terça-feira, novembro 01, 2011

Dispersão



Perdi-me dentro de mim 
Porque eu era labirinto
E hoje, quando me sinto.
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que me abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que protejo:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que sonhei!... )

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...



Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...


Paris - maio de 1913.

Mário de Sá-Carneiro
Poemas Completos
Edição Fernando Cabral Martins
Assírio & Alvim
2001
Pintura mista: Thinker Rooted Ground, de Anthony Burks

Poema XXX




Para ficar próximo do sempre
tens de decidir-te nos difíceis momentos em que,
acompanhado, permaneces só.
Cada um pode acreditar no que quiser, mas a vitória maior
é permanecer no coração de quem nos ama.
Neste cemitério que é a vida, tens de apelar
a uma energia que te supere, não àquilo que é divino
mas ao que permanece profundamente humano,
ao que te faz descobrir uma outra porta,
aquela por onde o amor não deixa de fluir,
porque o amor derrubará essa porta se a mantiveres fechada.
Não percas a noção de que és o motor da tua vida,
um impulsionador da realidade, nem
te envergonhes do que dela podes retirar.
Só assim poderás ou voltarás a amar.

Não te adornes com a mentira, com a ganância,
com o pouco que tens,
porque sempre terás pouco,
porque sempre o muito não fará de ti melhor,
a não ser que semeies para colher,
que dês para receber,
que saibas ensinar para aprender todos os dias.

Os momentos mais surpreendentes são
aqueles em que ofereces, não aqueles em que recebes.
Só desse modo poderás sentir-te maior
do que a distância. Só quando caminhares
por dentro de ti mesmo, em busca de ti mesmo,
poderás encontrar outros, e mais outros, e outros ainda,
em recantos, em ruas, nas praias que há em ti.
E verás como esses outros são iguais. E como estão
próximos daqueles que tu amas e daqueles que te amam.
Sorri. Já não estás só. Há coisas difíceis de abordar
mas que não são problemas. Nem talvez soluções.
Procura-te na luz que regressa às tuas mãos. E nela
invoca a moeda de três faces com que os pobres
compram os momentos que a vida nunca tem
para lhes dar.





JOAQUIM PESSOA, 
in O POUCO É PARA ONTEM 
Litexa Editora, 2008

Campos entardecidos




O pôr do Sol de pé como um Arcanjo
tiranizou o caminho.
A solidão povoada como um sonho
estagnou em redor da aldeia.
Os badalos recolhem a tristeza
tão dispersa da tarde. A lua nova
é uma pequena voz vinda do céu.
Enquanto vai anoitecendo
torna a ser campo a aldeia.

O pôr do Sol que não cicatrizou
ainda magoa a tarde.
Abrigam-se as cores trémulas
nas entranhas das coisas.
No quarto vazio
a noite há-de encolher os espelhos.



JORGE LUIS BORGES, 
in FERVOR DE BUENOS AIRES, 
in OBRAS COMPLETAS I 1923-1949
Ed. Teorema 1998


Fotografia: Sundown, de M.A. Andrew

sexta-feira, outubro 14, 2011

Aforismo



Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.

Estávamos iguais
com duas diferenças:

Não era interrogada
e por descuido podiam pisa-la.

Mas aos dois intencionalmente
podiam por-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.

José Craveirinha

Parrrede!


Quando eu estudava no colégio, interno,
Eu fazia pecado solitário.
Um padre me pegou fazendo.
- Corrumbá, no parrrede!
Meu castigo era ficar em pé defronte a uma parede e
decorar 50 linhas de um livro.
O padre me deu pra decorar o Sermão da Sexagésima
de Vieira.
- Decorrrar 50 linhas, o padre repetiu.
O que eu lera por antes naquele colégio eram romances
de aventura, mal traduzidos e que me davam tédio.
Ao ler e decorar 50 linhas da Sexagésima fiquei
embevecido.
E li o Sermão inteiro.
Meu Deus, agora eu precisava fazer mais pecado solitário!
E fiz de montão.
- Corumbá, no parrrede!
Era a glória.
Eu ia fascinado pra parede.
Desta vez o padre me deu o Sermão do Mandato.
Decorei e li o livro alcandorado.
Aprendi a gostar do equilíbrio sonoro das frases.
Gostar quase até do cheiro das letras.
Fiquei fraco de tanto cometer pecado solitário.
Ficar no parrrede era uma glória.
Tomei um vidro de fortificante e fiquei bom.
A esse tempo também eu aprendi a escutar o silêncio
das paredes.

Manoel de Barros
No livro Memórias Inventadas, As infância de Manoel de Barros

quinta-feira, outubro 13, 2011

Quando vier a Primavera



Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.


Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

Homem



Homem, que vens de humanas desventuras,
que te prendes à vida e te enamoras,
que tudo sabes e que tudo ignoras,
vencido herói de todas as loucuras,

que te debruças pálido nas horas
das tuas infinitas amarguras,
e na ambição das coisas mais impuras
és grande simplesmente quando choras,

que prometes cumprir e que te esqueces,
que te dás à virtude e ao pecado,
que te exaltas e cantas e aborreces,

arquitecto do sonho e da ilusão,
ridículo fantoche articulado
− eu sou teu camarada e teu irmão.

António Botto
(1897-1959)

Discurso ao príncipe de Epaminondas, mancebo de grande futuro



Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és flor nem luto nem acalanto nem estrela
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espelho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral rasgando-nos os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem.



Mário Cesariny
Manual de Prestidigitação

sexta-feira, outubro 07, 2011

A Árvore e a Núvem



Uma árvore anda de aqui para ali sob a chuva,
com pressa, ante nós, derramando-se na cinza.
Leva um recado. Da chuva arranca vida
como um melro ante um jardim de fruta.

Quando a chuva cessa, detém-se a árvore.
Vislumbramo-la direita, quieta em noites claras,
à espera, como nós, do instante
em que flocos de neve floresçam no espaço.

Tomas Tranströmer

Desde a Montabha (1962)



Estou na montanha e vejo a enseada.
Os barcos descansam sobre a superfície do verão.
«Somos sonâmbulos. Luas vagabundas.»
Isso dizem as velas brancas.

«Deslizamos por uma casa adormecida.
Abrimos as portas lentamente.
Assomamo-nos à liberdade.»
Isso dizem as velas brancas.

Um dia vi navegar os desejos do mundo.
Todos, no mesmo rumo – uma só frota.
«Agora estamos dispersos. Séquito de ninguém.»
Isso dizem as velas brancas.

Tomas Tranströmer
O poeta sueco que virou nóbel da literatura

sexta-feira, setembro 23, 2011

Michel Foucault : Les Mots et les Choses

Disse Foucault entre outras coisas...


“A psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia.”


“De homem a homem verdadeiro, o caminho passa pelo homem louco.”

“Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”

“O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.”

“Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo.”

“Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.”


Michel Foucault

... e disse muito bem, digo eu!
;o)

terça-feira, agosto 02, 2011

The Gate



Never mind thought,
its insect static. This

is about the body—mine—
caught between a hung moon
and the edge of the road.

I stood alone in the dark
with a flashlight in my mouth,
spinning and spinning
the combination. Nothing.

Night pressed in. Deer.
Crickets hawked
their delicate wares.

In panic the mind leaves
and the body collides
with its animal limits. Alert

with fear I flashed
on my remaining hours. When
the shackle gave way, too late—

I was already stone.


by Mari L’Esperance


Born in Kobe, Japan, Mari L’Esperance is a Hapa poet whose first full-length collection The Darkened Temple was awarded the 2007 Prairie Schooner Book Prize in Poetry and published by the University of Nebraska Press in September 2008. An earlier collection Begin Here was awarded a Sarasota Poetry Theatre Press Chapbook Prize. A graduate of the Creative Writing Program at New York University and a recipient of fellowships and grants from The New York Times, Hedgebrook, and Dorland Mountain Arts Colony, L’Esperance lives and writes in the San Francisco Bay Area.


*Photo courtesy of Guillermo Baixauli.
in Zócalo Public Square

domingo, julho 24, 2011

Ursula Rucker - l.o.v.e.


Ursula Rucker - l.o.v.e.


ON THIS DAY
THERE WILL BE NO TALK OF WAR
OR POLITIC
OR DISASTER
OR DEATH
LOVE IS ALIVE TODAY
SO WE WILL SPEAK ONLY OF LOVE
THERE WILL BE ONLY LOVE
ON TONGUE
AND LIP
AND IN HEART
AND THOUGHT
AND IT WON'T BE THAT HOLLYWOOD TYPE OF LOVE
NOT T.V. LOVE
NOT DIMESTORE NOVEL LOVE
AND CERTAINLY, NOT MAINSTREAM MUSIC LOVE
LOVE
LOVE
YOU KNOW, LOVE
LOVE THAT HAS BEEN WORKED ON
LIKE GARDENS AND TERM PAPERS
LOVE THAT HAS BEEN NURTURED, LIKE CHILDREN
AND WELL, LIKE CHILDREN
LOVE THAT FALLS, CRASHES EVEN, BURNS
BUT DUSTS OFF, FIXES UP...AND RISES
RISES
MORE BRILLIANT THAN BEFORE
PHOENIX LOVE
YEAH, PHOENIX LOVE
SO, LET US SPEAK ONLY OF LOVE
HEALING LOVE
NO HERBAL OR OVER-THE-COUNTER LOVE
REAL HEALING LOVE
LIKE GOD LOVE
LIKE MOTHER'S LOVE
LOVER'S LOVE
CHILD'S LOVE
LIKE, BEST FRIEND LOVE
AND CHANGE THE WORLD LOVE
HUMAN LOVE
HUMANS LOVE
LOVE SOFT
LOVE HARD
BUT JUST LOVE
ENJOY THIS NEW GARDEN
WORK ON IT TOGETHER
AND IT WILL BE PERENNIAL
IT WILL GROW...YEAR TO YEAR
IT WILL BE BEAUTIFUL
IT WILL WIN BLUE RIBBONS AND EVERYTHING
FOLKS WILL COME FROM FAR AND WIDE JUST TO SEE IT
AND WISH THEY HAD IT
HAD THIS KIND OF GARDEN
THIS KIND OF...
LOVE
LOVE

terça-feira, junho 14, 2011

AFLEUR (giuseppe la spada + con_cetta)



Notes on artwork:
Love? And if love was a flower? and if love was a flower of paper, a flower cloth? Where does love hide?
My ispiration, the poetic highpoint of Vigo's cinema, the skipper has been told that one can see the person that one loves underwater.
In Western culture, the tulip is a symbol of inconstancy. In oriental culture is perfect love.

concept & video: giuseppe la spadamusic: con_cetta (giuseppe cordaro)

terça-feira, maio 31, 2011

Sem emoção, nada avança... Bel Cesar




As emoções, com seus altos e baixos, dão cor à vida.
David Fontana

A palavra emoção vem do latim emovere que significa abalar, sacudir, deslocar. Esta, por sua vez, deriva de movi, que significa literalmente: pôr em movimento, mover. Logo, emoção, antes de mais nada, significa movimento. Ou ainda, energia em movimento. Portanto, não devemos perder de vista o fato de que sem emoção, nada avança.

Na psicologia ocidental, o termo emoção ainda está em discussão. Enquanto na linguagem quotidiana os conceitos são compreensíveis, na linguagem da ciência reina confusão.

Uma vez que não existe em tibetano um termo específico para traduzir a palavra emoção, podemos encontrar atualmente livros em que Sua Santidade Dalai Lama debate com psicólogos ocidentais a utilização da palavra. Há interessantes discussões sobre o assunto nos livros Emoções que Curam e Como lidar com Emoções destrutivas, organizados por Daniel Goleman. Neste último, cientistas e psicólogos chegam a uma definição funcional: a emoção é um estado mental que tem um forte componente sensível. Mas o Dalai Lama esclarece: O fato de existir um termo específico para definir emoção no pensamento ocidental não implica que se deu ênfase especial ao entendimento da natureza da emoção. Talvez inicialmente a motivação para rotular algo como emoção tenha sido valorizar a razão, identificando algo que não é racional.

O monge budista Matthieu Ricard, intérprete do Dalai Lama, esclarece ainda em outro trecho do mesmo livro: A palavra inglesa emotion provém da raiz latina emovere – algo que põe a mente em movimento, tanto para atividades prejudiciais, quanto neutras ou positivas. No budismo, por outro lado, chamaríamos de emoção algo que condiciona a mente e a faz adotar certa perspectiva ou visão das coisas.

Quando encontrei o budismo, uma de minhas primeiras perguntas ao Lama Gangchen Rinpoche foi a respeito das emoções. Em minha visão errônea, os budistas eram pessoas que haviam subjugado todos os seus conflitos, e por isso viviam continuamente em estado de equilíbrio, o que, para mim, os tornava inabaláveis, mas também, de certo modo insensíveis. Se eu praticasse o budismo, tornar-me-ia uma pessoa sob total autocontrole, fria e sem emoções? As emoções impediriam meu desenvolvimento espiritual? Se assim fosse, achava que seria totalmente impossível seguir esse caminho, pois reconheço que sou uma pessoa altamente emocional e vulnerável às influências externas do tempo, das pessoas, do ambiente e principalmente dos sons. Por outro lado, sempre soube que é justamente a minha sensibilidade que torna possível meu desenvolvimento espiritual. Lama Gangchen Rinpoche gentilmente me respondeu: Não há nada de errado em ser emocional. Por meio do budismo, você vai aprender a seguir as emoções positivas e deixar as negativas.

As emoções positivas nos dão uma perspectiva mais ampla das situações, isto é, nos dão clareza e confiança em nossos propósitos: onde estamos e para onde queremos ir. Elas nos trazem a sensação de felicidade, pois o sentido da vida torna-se energeticamente presente. As emoções negativas nos deixam descrentes e confusos quanto a nossas metas. Quando perdemos o significado da vida, sentimos uma profunda tristeza.

Como a fé e a compaixão, as emoções positivas são virtudes mentais: energia positiva acumulada. Elas nos revitalizam, despertam determinação e interesse em obter novos conhecimentos e renovar nossas atitudes: uma vontade sincera de mudar para melhor.

Uma vez que as emoções positivas nos tornam disponíveis para o novo, tornamo-nos flexíveis e abertos. Interessados em aprender, sentimo-nos vivos, despertos. Portanto, as emoções positivas são reparadoras. Elas provocam bem-estar e nos ajudam a superar as emoções negativas que, por sua vez, consomem nossa energia vital, deixando-nos exaustos e depressivos.

Essencialmente, a emoção destrutiva – que é também chamada de fator mental ‘obscurecedor’ ou ‘aflitivo’ – é algo que impede a mente de comprovar a realidade como ela é. Na emoção destrutiva, sempre haverá uma lacuna entre o que parece e o que é. Pois quando nossas opiniões estão contaminadas por uma emoção negativa, temos uma imagem distorcida das coisas e das pessoas, e ficamos impedidos de equilibrar suas qualidades positivas e negativas.

Quando somos movidos pelo apego excessivo, pela aversão ou pelo ressentimento, por exemplo, ficamos rígidos. Amarrados às nossas idéias fixas, tornamo-nos intolerantes e sem perspectiva. Não estamos, portanto, disponíveis às mudanças: presos a nossos hábitos negativos, perdemos a habilidade de nos movermos em direção a novas possibilidades.

As emoções negativas inflam o ego e criam exageros que acabam por desencadear separações, ciúmes, inveja, baixa auto-estima e doenças físicas.

As emoções positivas geram estados mentais construtivos como o amor-próprio, a boa auto-estima, sentimentos de integridade, de solidariedade, de generosidade e compaixão, e por isso nos tornam empáticos com sabedoria: somos capazes de perceber a nós mesmos e aos outros ao mesmo tempo e, assim, agir de acordo com as necessidades reais da situação.

A prática da filosofia budista nos ajuda a desenvolver a inteligência emocional: a capacidade de criar motivações para si próprio e de persistir num objetivo apesar dos percalços; de controlar impulsos e saber aguardar pela satisfação de seus desejos; de se manter em bom estado de espírito e de impedir que a ansiedade interfira na capacidade de raciocinar; ser empático e autoconfiante.

O budismo nos ajuda a desenvolver a autoconsciência, isto é, a capacidade de identificar um sentimento quando ele surge e a habilidade de discernir as emoções construtivas das destrutivas.

A anatomia das emoções segundo a Psicologia Budista

Segundo o budismo tibetano, a natureza da mente sutil do ser humano é potencialmente pura como a energia de um puro cristal. No entanto, está contaminada por três grandes venenos mentais: o apego, a raiva e a ignorância. Estes, por sua vez, são resultantes de um grande veneno mental: o fato de pensarmos que as coisas existem por si só e que são permanentes.

Nada existe por si só, tudo está interligado. Apesar do seu aspecto permanente, tudo está em constante transformação. Podemos compreender estas verdades racionalmente, mas agimos instintivamente como se as coisas e as pessoas existissem em si e por si próprias, a partir delas mesmas. Nossa percepção da realidade está distorcida. Da mesma forma, sabemos que vamos morrer um dia, mas vivemos como se fôssemos imortais.

Podemos até perceber nossa ignorância, mas enquanto a base de nosso ambiente interno for o medo e a dúvida, continuaremos presos a nossos hábitos mentais distorcidos. Enquanto pensarmos que somos pessoas carentes e inadequadas, não seremos capazes de reconhecer nossa base interna positiva!

A anatomia das emoções conforme a psicologia budista é descrita no Abhidharma (que na língua pali dos tempos de Buddha significa “a doutrina final”), o texto original da epistemologia do budismo, onde são elaboradas as investigações originais de Buddha sobre a natureza humana.

Segundo o Abhidharma, todos os seres são compostos de fatores mentais ou “Nama”, e fatores materiais ou “Rupa”. O indivíduo é um “Nama-rupa”. Nama denota tanto a consciência como os estados mentais. Assim, o Abhidharma enumera 51 tipos de estados mentais.

Ainda de acordo com o Abhidharma, existem 89 tipos de consciência. Destas, 80 são características do ser comum, e as 9 restantes são próprias daqueles que atingiram um desenvolvimento espiritual superior.

A psicologia budista descreve nos “sankharas”, ou estados mentais generalizados, Seis Emoções Básicas (Seis Venenos-Raiz ou Aflições mentais); Vinte Emoções Secundárias; Onze Fatores Mentais Virtuosos; Quatro Fatores Mentais que podem ou não ser virtuosos.

As Seis Emoções Básicas são (em itálico, os termos em tibetano):
1. Apego, isto é, desejo ou ansiedade por possuir – Dö.Tchag
2. Raiva, hostilidade, ódio – Kong.tro
3. Ignorância, ilusão – Ma.rig.pa
4. Orgulho, arrogância – Nga.guiel
5. Dúvida ou suspeita – Te.tsom
6. Visões falsas ou errôneas – Ta.wa.nyon.mon.tchen

Destas, as três primeiras são as mais graves, por isso, são chamadas de Os três Venenos Mentais.

As Vinte Emoções Secundárias, derivadas de algumas Emoções básicas, conhecidas também como Os Vinte Fatores Afins da Instabilidade, são:

Raiva
1.Irritação, agressividade ou indignação – Tro.wa
2.Ressentimento ou rancor – Kön.dzin
3.Hipocrisia ou dissimulação – Tchab.pa
4.Malevolência ou animosidade – Tseg.pa
5.Inveja ou ciúmes – Trag.dog
6. Crueldade ou malícia – Nam.Tse

Apego
7. Avareza – Ser.na
8. Excitação mental – Go.pa
9. Arrogância ou presunção – Guia.pa

Ignorância
10. Desatenção – She.Shin Min.pa
11. Melancolia ou Mente Pesada – Mug.pa
12. Falta de confiança ou Incredulidade – Ma.te.pa
13. Preguiça – Lê.lo
14. Falta de atenção introspectiva ou esquecimento – Dje.nhe

Ignorância + apego
15. Falsidade ou pretensão – Guiu
16. Desonestidade – Yo

Ignorância + apego + raiva
17. Impudência ou ausência de vergonha – NgoTsa Med.pa
18. Falta do senso de propriedade ou desconsideração – Trel.Me.pa
19. Desinteresse – Bag.me
20. Distração – Nam.yen

Os Onze Fatores Mentais Virtuosos são:
1. Fé – De.pa
2. Sentido do que é correto – Ngo.Tsa.she.pa
3. Consideração pelos outros – Trel.yo.pa
4. Desapego – Ma.tchag.pa
5. Não-raiva ou imperturbabilidade – She.dang.me.pa
6. Não-confusão – Ti.mug.me.pa
7. Perseverança entusiástica – Tson.dru
8. Flexibilidade – Shintu.djang
9. Retidão mental – Bag.yo
10. Não-violência – Nam.par.mi.tse.ba
11. Equanimidade – Tang.nhön

Os Quatro Fatores Mentais que podem ou não ser virtuosos são:
1. Dormir – nhi
2. Arrependimento – Guio.pa
3. Investigação geral – Tog.pa
4. Análise – Tcho.pa

O Abhidharma distingue entre os fatores mentais que são puros, saudáveis e os que são impuros e prejudiciais. O critério usado para fazer essa distinção foi a observação dos fatores mentais que contribuem para a meditação e para o desenvolvimento espiritual.

As emoções positivas encontram-se, na maioria das vezes, encobertas por emoções negativas. A psique humana é formada por camadas mentais: experiências que se sobrepõem e se sustentam umas às outras. Por esta razão, o desenvolvimento espiritual é comparado ao ato de descascar uma cebola: cada camada retirada expõe as qualidades da camada que está abaixo, até desvendar seu núcleo, que é verdadeiramente puro e positivo. Portanto, o budismo nos inspira a entender que no exato momento em que sentimos raiva, temos também a não-raiva como um realidade emocional subjacente à ela.

Ou seja, nossas emoções negativas não podem contaminar nossa natureza essencial - o núcleo de nossa mente -, mas podem encobri-la. Se elas fossem inerentes à mente, não haveria sentido em nosso trabalho de removê-las! Para nos desenvolvermos interiormente, é essencial perceber que é possível nos libertarmos delas.

Chögyam Trungpa, um renomado mestre do budismo tibetano, define o núcleo central e saudável de nossa mente como a bondade fundamental dos seres humanos. Assim, diz ele: “O primeiro passo para perceber a bondade fundamental é valorizar o que temos. Em seguida, porém, deveríamos ver mais longe e examinar o que somos, quem somos, onde estamos, quando somos e como somos enquanto seres humanos, para então sermos capazes de tomar posse da nossa bondade fundamental. Não se trata de uma ‘posse’, mas de todo modo nós a merecermos”.

A mente pura como cristal está sempre presente; no entanto, depende de nosso ambiente interior para se manifestar. Isto é, necessita de constante abertura, confiança e coragem para olhar o que quer que surja em nossa vida com compaixão e entendimento.

Chögyam Trungpa esclarece ainda: “A bondade fundamental está estreitamente vinculada à idéia de Bodhichitta na tradição budista. Bodhi significa ‘desperto’ ou ‘alerta’ e chitta quer dizer ‘coração’; Bodhichitta, portanto, é o ‘coração desperto’. O coração desperto provém de estarmos dispostos a enfrentar nosso estado anímico. Essa exigência pode parecer excessiva, mas é necessária. Cada um de nós deve examinar-se, perguntando quantas vezes tentou um contato pleno e verdadeiro com seu coração”.

No caminho do autoconhecimento, temos que ficar atentos às desculpas que usamos para não buscar nossa evolução. Não podemos nos acomodar nem confundir estabilidade com estagnação ou segurança com resistência à mudança.

As emoções destrutivas nos deixam inquietos e inseguros. Se, por exemplo, estamos preocupados em buscar formas de garantir a continuidade de um prazer, perdemos a espontaneidade e deixamos de apreciar o momento presente. O problema é que estamos tão habituados a nosso ambiente interno de tensão e expectativa que sequer nos damos conta de que estamos sofrendo.

As emoções positivas, ao contrário, são sempre realistas e construtivas. Com elas, nos aquietamos e sentimos disponibilidade para nos abrirmos para os outros.

Jeremy Hayward, discípulo de Chögyam Trungpa, escreve em O Mundo Sagrado: “Nossa bondade fundamental repousa na capacidade de vivermos de uma maneira plena, apaixonada, vívida e ativa; na capacidade de estarmos totalmente conscientes de nossa vida e de vivê-la irrestritamente, não importa as reviravoltas que possa dar; e na capacidade de cuidar tanto dos outros quanto de nós mesmos”.

Portanto, o ponto de partida é aceitar que podemos transformar nossa mente inquieta em uma mente de abertura e confiança: voltar “para casa”, como dizem os mestres budistas

Referências bibliograficas:
1 Editado pelo Prof. Dr. Friedrich Dorsch, Dicionário de Psicologia Ed. Vozes, p.297.
2 e 3 Daniel Goleman, Como lidar com Emoções destrutivas, ed. Campus, p. 167 e 89.
4 Mathieu Ricard em Daniel Goleman, Como lidar com Emoções destrutivas, ed. Campus, p. 90.
5 Daniel Goleman, Inteligência Emocional, Ed. Objetiva, p. 46
6 Ver Daniel Goleman, A Mente Meditativa, Ed. Ática, p. 132.
8 e 9 Chögyam Trungpa Shambhala. Ed. Cultrix p.47
10 Jeremy Hayward, O Mundo Sagrado, Ed.Rocco, p. 29.

Texto extraído do “O livro das Emoções - Reflexões inspiradas na Psicologia do Budismo Tibetano” de Bel César, Ed. Gaia.

domingo, maio 29, 2011

terça-feira, maio 17, 2011

Do livro do desassossego





"Eu tenho uma espécie de dever, de dever de sonhar sempre,
pois sendo mais do que
um espectador de mim mesmo,
Eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso.
E assim me construo a ouro e sedas,
em salas supostas, invento palco,
cenário para viver meu sonho
entre luzes brandas e
músicas invisíveis"

Do livro do desassossego - Fernando Pessoa

(sacado do mural da Elsa Serra)

quinta-feira, abril 21, 2011

The Place



The place may be clean and tidy
and have for furniture only a mat
if there are windows if they are large
so much the better if there’s a flower
or a picture that’s special
if there is a teacher
there may be respite from sorrow
if there is rain remember the occasion
of the double rainbow if there is a marriage
there may be need of a goat
about beauty the old ones could not have forseen
if there is love
think on these things honey nuts and olives
if they are taken from nature
there will be nothing to behold
nor an eye
a poet will have to sing
of the ineffable as true
to begin with


From A Palace of Pearls (Copper Canyon Press, 2005), by Jane Miller.

Pic by rwangsa

domingo, abril 10, 2011

Tu que me deste o teu cuidado





TU QUE ME DESTE O TEU CUIDADO...

Tu que me deste o teu carinho
E que me deste o teu cuidado,
Acolhe ao peito, como o ninho
Acolhe ao pássaro cansado,
O meu desejo incontentado.

Há longos anos ele arqueja
Em aflitiva escuridão.
Sê compassiva e benfazeja.
Dá-lhe o melhor que ele deseja:
Teu grave e meigo coração.

Sê compassiva. Se algum dia
Te vier do pobre agravo e mágoa,
Atende à sua dor sombria:
Perdoa o mal que desvaria
E traz os olhos rasos de água.

Não te retires ofendida.
Pensa que nesse grito vem
O mal de toda a sua vida:
Ternura inquieta e malferida
Que, antes, não dei nunca a ninguém.

E foi melhor nunca ter dado:
Em te pungido algum espinho,
Cinge-a ao teu peito angustiado.
E sentirás o meu carinho.
E setirás o meu cuidado. 



Manuel Bandeira

The One Straw Revolution by Masanobu Fukuoka

The crisis is over... Be positive, keep on sleeping

;O)

A short movie inspired on numbers, geometry and nature

A SHORT MOVIE INSPIRED ON NUMBERS, GEOMETRY AND NATURE

sábado, abril 09, 2011

monoblue quartet - 6. lover

Laisser faire, laisser passer



1.
o neoliberal
neolibera:
de tanto neoliberar
o neoliberal
neolibera-se de neoliberar
tudo aquilo que não seja neo (leo)
libérrimo:
o livre quinhão do leão
neolibera a corvéia da ovelha

2.
o neoliberal
neolibera
o que neoliberar
para os não-neoliberados:
o labéu?
o libelo?
a libré do lacaio?
a argola do galé?
o ventre-livre?
a bóia-rala?
o prato raso?
a comunhão do atraso?
a ex-comunhão dos ex-clusos?
o amanhã sem fé?
o café requentado?
a queda em parafuso?
o pé de chinelo?
o pé no chão?
o bicho de pé?
a ração da ralé?

3.
no céu neon
do neoliberal
anjos-yuppies
bochechas cor-de-bife
privatizam
a rosácea do paraíso
de dante
enquanto lancham
fast-food
e super
(visionários) visam
com olho magnânimo
as bandas
(flutuantes)
do câmbio:
enquanto o não
- neoliberado
come pão
com salame
(quando come)
ele dorme
sonhando
com torneiras de ouro
e a hidrobanheira cor
de âmbar
de sua neo-
mansão em miami

4.
o centro e a direita
(des)conversam
sobre o social
(questão de polícia):
o desemprego um mal
conjuntural
(conjetural)
pois no céu da estatís-
tica o futuro
se decide pela lei
dos grandes números

5.
o neoliberal
sonha um mundo higiênico:
um ecúmeno de ecônomos
de economistas e atuários
de jogadores na bolsa
de gerentes
de supermercado
de capitães de indústria
e latifundários de
banqueiros
- banquiplenos ou
banquirrotos
(que importa?
dede que circule
autoregulante
o necessário
plusvalioso
numerário)
um mundo executivo
de mega-empresários
duros e puros
mós sem dó
mais atento ao lucro
que ao salário
solitários (no câncer)
antes que solidários:
um mundo onde deus
não jogue dados
e onde tudo dure para sempre
e sempremente nada mude
um confortável
estável
confiável
mundo contábil.

6.
(a
contramundo o mundo-não -mundo cão-
dos deserdados:
o anti-higiênico
gueto dos
sem-saída
dos excluídos pelo
deus-sistema
cana esmagada
pela moenda
pela roda dentada
dos enjeitados:
um mundo-pêsames
de pequenos
cidadãos-menos
de gente-gado
de civis
sub-servis
de povo-ônus
que não tem lugar marcado
no campo do possível
da economia de mercado
(onde mercúrio serve ao deus
mamonas)

7.
o neoliberal
sonha um admirável
mundo fixo
de argentários e multinacionais
terratenentes terrapotentes
coronéis políticos
milenaristas (cooptados) do
perpétuo
status quo:
um mundo privé
palácio de cristal
à prova de balas:
bunker blau
durando para sempre - festa
estática
(ainda que sustente sobre fictas
palafitas
e estas sobre uma lata
de lixo)

Haroldo de Campos