sexta-feira, outubro 19, 2012

It's allright, ma...




Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.

Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço), deixaste-me
pouco espaço para tanta existência.

Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.

Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.

Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.

Nas tuas mãos
entrego o meu espírito,
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.

Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.

Manuel António Pina

quinta-feira, outubro 04, 2012

De Costas para a Janela




Uma cerveja, por favor

Eu podia habituar-me a ser uma pessoa
arrumada.  Aqui chega ao fim um dia calmo
todo o dia o telefone esteve calado, e em silêncio quase rebenta
o cesto da roupa debaixo do lavatório.
No écran explode uma casa perante a cara
espantada do locutor.  Oh the fucking news!

O que eu quero é sobretudo amor. Não quero
preocupar-me com a marca das minhas cuecas, das minhas meias
que me oferecem pelo Natal, nos meus anos,
pela Páscoa e no dia em que morrer. Em criança pedia
um comboio e recebia uma camisa
coisa prática! embrulhada em celofane, presa com mil alfinetes.
Este poema não é praticamente nada. Mas pensa bem:
Como há-de desaparecer o que nós não derrubamos, a não ser o sabonete
na água do banho? Estou outra vez a fazer humor, embora não
me sinta  voltado para aí.  Terei mesmo
de lavar a cabeça antes de tu chegares? Lavar a cabeça
é uma recordação terrível...

E depois, amo toda a família, especialmente a minha mulher
que não é da família. Como? Eu não disse nada.
Acabou o noticiário do dia, o dia em noticias, the fucking
news. Hoje houve boas notícias. A  Casa da América
foi ocupada, não digo onde.  Começa o filme
e ainda não lavei a cabeça!
Tu não és a minha mulher. Amo-te. Protege-me
que estou a fumar demais! Fica-se nervoso nesta casa
depois de 1933 e depois de 1945. Estás a ligar alguma coisa ao que eu digo?

De repente encontro-me num café, com grande barulheira
ao balcão. Este poema está cheio de potencialidades
como a nossa vida. Evidentemente que não se passa um dia
sem álcool. Ah, a bebida é que dá gosto à vida.
Mehdi já lá está, bêbado como um cacho.  Também tu já chegaste há
um bocado, e tens razões para não falar comigo.
Vai alta a noite, a música está alta. Peço uma aguardente clara
para a minha cabeça ainda clara. Uma cerveja, por favor. Seja o que for
que tu penses de mim, é importante que eu te diga: também tu
escreveste este poema. Não foi arte nenhuma; foi escrito
de costas para a janela.



Jorgen Theobaldy, 1981

A paixão da matemática



Um Quociente apaixonou se

Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base…
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo ortogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela à dela.
Até que se encontraram
No Infinito.
“Quem és tu?” indagou ele
Com ânsia radical.
“Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa.”
E de falarem descobriram que eram
O que, em aritmética, corresponde
A alma irmãs
Primos entre si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz.
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas senoidais.
Escandalizaram os ortodoxos
das fórmulas euclideanas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas
e pitagóricas.
E, enfim, resolveram-se casar
Constituir um lar.
Mais que um lar.
Uma Perpendicular.
Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e
diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram
uma secante e três cones
Muito engraçadinhos.
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum…
Freqüentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo.
Uma Unidade.
Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu
Relatividade.
E tudo que era expúrio passou a ser
Moralidade
Como aliás, em qualquer
Sociedade.

Millor Fernandes
Pic by Kiko

segunda-feira, agosto 27, 2012

Alma inquietante


Apazigua ó alma inquietante,
realça a beleza do ser que habitas.
Não chores a memória dos mortos
mas a vergonha dos vivos.
Sonho habitar nas entrelinhas
do teu ser,
não te deixes morrer
antes que vivas verdadeiramente.
Descrente.
Não culpes a tua mente
mas o ser doente
que habita em ti.
Olharás para o céu e
não haverá mais véu,
apenas o réu
lançado e massacrado
por ti julgado


Poema de
 Andreia Luz

Fotografia de António Matos

terça-feira, julho 31, 2012

LUGAR DE CULTO



Vagueio num lugar
Iluminado e mágico
Da cor dos sentidos 

Onde o céu e a terra
Se unem para guardar
Paraísos perdidos...

É a energia da natureza
A hipnotizar as cegonhas
Num castelo de nevoeiro 

Areia branca e fina
Aos pés de um sonho,
Num planeta inteiro...

Falésia que se encosta
Nas costas de um oceano
A espreguiçar o momento

Fonte de água doce
E segredos guardados
Pela chave do tempo....


Poema: Elsa Pacheco
Foto: Ansel Adams

sábado, março 31, 2012

ACORDANDO COM O INIMIGO

Arte de George Grosz


O estraga-prazer não é um chato (o chato é uma profissão, tem registro e sindicato).


O estraga-prazer é um momento, amigo ou um familiar que se torna inconveniente e acaba com nossa alegria. Alguém do nosso convívio que foi tomado de inveja e ciúme. E muda de lado, entra no lado negro da força.


- O estraga-prazer é o colega que assistiu, de longe, sua maratona para seduzir uma guria e chega perto no momento do beijo. Não segura a vela, mas o extintor de incêndio.


- O estraga-prazer não anuncia o final do filme, trata de revelar o final errado do filme, só para vê-lo sofrer à toa.


- O estraga-prazer desliga na sua cara e mente que caiu a ligação.


- O estraga-prazer pode ser o balconista ou um bancário: na hora em que você será atendido, ele avisa que você errou de fila e que agora só amanhã.


- O estraga-prazer espera você contar uma piada até a metade, para dizer que já conhecia.


- O estraga-prazer aniquila com sua festa de aniversário: bebe demais, tira a camisa para dançar, fala besteira.


- O estraga-prazer é o pai avisando ao filho que passará o final de semana fora, mas surge um dia antes, na hora em que o adolescente transa com a namorada na sala.


- O estraga-prazer é o marido corno que tenta fazer surpresa para a mulher. E aparece sem avisar, na maior falta de educação, e descobre o amante usando sua cama.


- O estraga-prazer é o filho grosseiro do seu namorado que pretende terminar com a relação linda de vocês porque sofre com a separação dos pais.


- O estraga-prazer é o terapeuta dando alta bem no instante que você começava a gostar da terapia.


- O estraga-prazer é seu time levando gol no último minuto, quando você já saiu do estádio.


- O estraga-prazer é sua ex confessando que nunca gozou com você.


- O estraga-prazer é sua mãe confessando que desejava uma menina.


- O estraga-prazer é seu adversário justificando que deixou você ganhar.


Olhe bem para os lados, o estraga-prazer é um infiltrado, um padre sem batina, um general sem farda. Cuidado, ele está entre nós.

by Fabrício Carpinejar
http://carpinejar.blogspot.pt/2012/03/acordando-com-o-inimigo.html

quarta-feira, março 21, 2012

Poema sobre a recusa



Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.



Maria Teresa Horta
imagem: Salvatore Principe, Passion

terça-feira, março 13, 2012

Tissana 29



29

Quando cheguei a casa o meu porco Rosalina estava a escrever à máquina. Fiquei num grande estado de perplexidade e por isso perguntei o que estás aí a fazer. Sem erguer a cabeça Rosalina apontou com o chispe para o papel convidando-me a ler. A folha estava em branco porque Rosalina tinha retirado a fita da máquina para a enrolar na sua encaracolada cauda que nesse momento agitava com prazer. Rosalina foi sempre o que me impeliu ao mergulho na metafísica. Por isso sem dizer nada dirigi-me para a cozinha. Abri a gaveta dos talheres. Tirei a grande faca do estojo do trinchante. Acendi o lume e pus a grelha a aquecer. Dirigi-me de novo para o escritório onde Rosalina escrevia à máquina. Cortei-lhe algumas febras do lombo. O suficiente para uma bela refeição. Cortei também um pedaço de fita para enfeitar a travessa.

Ana Hatherly in 463 Tissanas
Desenho de Joana Vilaverde

Tisana 12




12

Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. 
Um dia encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não ficou nada. 
Esta história tradicional demonstra que se deve amar o próximo ou então ter muito cuidado com o que se come.

Ana Hatherly in 39 Tisanas

quinta-feira, março 01, 2012

A invenção do amor


Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

...

É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

...

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua


Extraído de a "invenção do amor" de Daniel Filipe
sempre actual, cada vez mais actual...

terça-feira, fevereiro 28, 2012

LUGARES COMUNS



Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também,
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mais adiante)

Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.

Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora...

E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu

Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber

E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
Como quem diz: That’s it

e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte

e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são

Ana Luisa Amaral

SAIR



Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul — o céu do dia —
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.

Antonio Cícero

STANZA XXXVIII



O que desejo dizer é isto
Não há princípio de um fim
Mas há um princípio e um fim
Para um princípio.
Porquê sim claro.
Qualquer um pode aprender esse norte claro
Não é somente norte mas norte como norte
Por que estavam eles preocupados.
O que quero desejo dizer é isto.
Sim claro.

Gertrude Stein - from Stanzas in Meditation
Jo Davidson: Gertrude Stein, bronze - Paris, 1923

Sandra Nkaké - Mon blog vidéo (playlist)

('http://www.youtube.com/p/B1668991CF2BE284?version=3&hl=pt_BR',)

segunda-feira, fevereiro 27, 2012

Carpinejar...


Não me inquieto
quando não recebo as respostas
das perguntas que não fiz.
Eu me conformei
em reservar alguma coisa
de ti para saber depois.
Um pouco de nosso amor
será póstumo.
É recomendável
não descobrir todos os segredos.


Fabrício Carpinejar
http://carpinejar.blogspot.com/
"Liberdade na vida
é ter um amor
para se prender"

Estar só é estar no íntimo do mundo



Por vezes cada objecto se ilumina
do que no passar é pausa íntima
entre sons minuciosos que inclinam
a atenção para uma cavidade mínima
E estar assim tão breve e tão profundo
como no silêncio de uma planta
é estar no fundo do tempo ou no seu ápice
ou na alvura de um sono que nos dá
a cintilante substância do sítio
O mundo inteiro assim cabe num limbo
e é como um eco límpido e uma folha de sombra
que no vagar ondeia entre minúsculas luzes
E é astro imediato de um lúcido sono
fluvial e um núbil eclipse
em que estar só é estar no íntimo do mundo

António Ramos Rosa
em "Poemas Inéditos"

CONOSCENZA



{o teu reconhecimento é a tua dependência},
não o deixes passar da fase da costura.
surge. insurge. inespera.
adquire expressões através do
eco difuso dos vegetais, coloca-te
nas ranhuras da madeira.
há uma vida imprópria algures.
pode não ser como aquela que espera
na plumagem de uma memória
por antecipação, mas protege o silêncio
e não deixa coagular o sangue.
{o teu reconhecimento é a tua dependência},
e quanto mais o memorizares
mais afastado estarás
dos lados obtusos de quem te deseja habitar
e da semêntica temporal
das pessoas que te pedirão um
poema bonito,
e nada pior do que escrever
um poema bonito.


Sylvia Beirute
in Uma Prática para Desconserto

quinta-feira, fevereiro 23, 2012

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada


I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II

Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.

III

Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando -

no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.

IV

Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V

Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

VI

No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

VII

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

VII

Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural
- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

IX

Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.

in "O Guardador de Águas" de Manoel de Barros

TEDxPhoenix - Lucianne Walkowicz - Look Up for a Change

terça-feira, fevereiro 07, 2012

Paulo Robalo



nada puede ocurrir una sola vez,nada es preciosamente precario... jlborges


By Paulo Robalo, o "pilas" que hoje é aniversariante!
;o)

Tu ensinaste-me a fazer uma casa



Tu ensinaste-me a fazer uma casa
com as m-aos e os beijos.
Eu morei em ti e em ti os meus versos procuraram
voz e abrigo.
E em ti guardei meu fogo e meu desejo.
Construía minha casa.
Porém não sei já das tuas mãos.
Os teus lábios perderam-se
entre palavras duras e precisas
que tornaram a tua boca fria
e a minha boca triste como um cemitério de beijos.

Mas recordo a sede unindo as nossas bocas
mordendo o fruto das manhãs proibidas
quando as nossas mãos surgiam por detrás de tudo
para saudar o vento.

E vejo ainda o teu corpo perfumando a erva
e os teus cabelos soltando revoadas de pássaros
que agora se recolhem, quando a noite se move,
nesta casa de versos onde guardo o teu nome.

JOAQUIM PESSOA,
in OS OLHOS DE ISA (1980)

Imagine dell'opera
Gustav Klimt