sábado, março 31, 2012

ACORDANDO COM O INIMIGO

Arte de George Grosz


O estraga-prazer não é um chato (o chato é uma profissão, tem registro e sindicato).


O estraga-prazer é um momento, amigo ou um familiar que se torna inconveniente e acaba com nossa alegria. Alguém do nosso convívio que foi tomado de inveja e ciúme. E muda de lado, entra no lado negro da força.


- O estraga-prazer é o colega que assistiu, de longe, sua maratona para seduzir uma guria e chega perto no momento do beijo. Não segura a vela, mas o extintor de incêndio.


- O estraga-prazer não anuncia o final do filme, trata de revelar o final errado do filme, só para vê-lo sofrer à toa.


- O estraga-prazer desliga na sua cara e mente que caiu a ligação.


- O estraga-prazer pode ser o balconista ou um bancário: na hora em que você será atendido, ele avisa que você errou de fila e que agora só amanhã.


- O estraga-prazer espera você contar uma piada até a metade, para dizer que já conhecia.


- O estraga-prazer aniquila com sua festa de aniversário: bebe demais, tira a camisa para dançar, fala besteira.


- O estraga-prazer é o pai avisando ao filho que passará o final de semana fora, mas surge um dia antes, na hora em que o adolescente transa com a namorada na sala.


- O estraga-prazer é o marido corno que tenta fazer surpresa para a mulher. E aparece sem avisar, na maior falta de educação, e descobre o amante usando sua cama.


- O estraga-prazer é o filho grosseiro do seu namorado que pretende terminar com a relação linda de vocês porque sofre com a separação dos pais.


- O estraga-prazer é o terapeuta dando alta bem no instante que você começava a gostar da terapia.


- O estraga-prazer é seu time levando gol no último minuto, quando você já saiu do estádio.


- O estraga-prazer é sua ex confessando que nunca gozou com você.


- O estraga-prazer é sua mãe confessando que desejava uma menina.


- O estraga-prazer é seu adversário justificando que deixou você ganhar.


Olhe bem para os lados, o estraga-prazer é um infiltrado, um padre sem batina, um general sem farda. Cuidado, ele está entre nós.

by Fabrício Carpinejar
http://carpinejar.blogspot.pt/2012/03/acordando-com-o-inimigo.html

quarta-feira, março 21, 2012

Poema sobre a recusa



Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.



Maria Teresa Horta
imagem: Salvatore Principe, Passion

terça-feira, março 13, 2012

Tissana 29



29

Quando cheguei a casa o meu porco Rosalina estava a escrever à máquina. Fiquei num grande estado de perplexidade e por isso perguntei o que estás aí a fazer. Sem erguer a cabeça Rosalina apontou com o chispe para o papel convidando-me a ler. A folha estava em branco porque Rosalina tinha retirado a fita da máquina para a enrolar na sua encaracolada cauda que nesse momento agitava com prazer. Rosalina foi sempre o que me impeliu ao mergulho na metafísica. Por isso sem dizer nada dirigi-me para a cozinha. Abri a gaveta dos talheres. Tirei a grande faca do estojo do trinchante. Acendi o lume e pus a grelha a aquecer. Dirigi-me de novo para o escritório onde Rosalina escrevia à máquina. Cortei-lhe algumas febras do lombo. O suficiente para uma bela refeição. Cortei também um pedaço de fita para enfeitar a travessa.

Ana Hatherly in 463 Tissanas
Desenho de Joana Vilaverde

Tisana 12




12

Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. 
Um dia encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não ficou nada. 
Esta história tradicional demonstra que se deve amar o próximo ou então ter muito cuidado com o que se come.

Ana Hatherly in 39 Tisanas

quinta-feira, março 01, 2012

A invenção do amor


Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

...

É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

...

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua


Extraído de a "invenção do amor" de Daniel Filipe
sempre actual, cada vez mais actual...