domingo, janeiro 31, 2010

Dois amantes



Dois amantes felizes fazem um só pão,
uma só gota de lua sobre a erva,
deixam andando duas sombras que se juntam,
deixam um único sol vazio numa cama.

De todas as verdades escolheram o dia:
não se atavam com fios, mas com um aroma,
e não despedaçaram a paz nem as palavras.
A alegria é uma torre transparente.

O ar, o vinho, vão com os dois amantes,
a noite dá-lhes as suas pétalas felizes,
têm direito aos cravos que apareçam.

Dois amantes felizes não têm fim nem morte
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.

Pablo Neruda, in
"Cem sonetos de amor"

O Sol nascerá



A sorrir
Eu pretendo levar
A vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade
Perdida 

Finda a tempestade
O sol nascerá
Finda esta saudade
Hei de ter outro alguém
Para amar


Cartola

quinta-feira, janeiro 28, 2010

ENVOI (1919)



Vai, livro natimudo,
E diz a ela
Que um dia me cantou essa canção de Lawes:
Houvesse em nós
Mais canção, menos temas,
Então se acabariam minhas penas,
Meus defeitos sanados em poemas
Para fazê-la eterna em minha voz

Diz a ela que espalha
Tais tesouros no ar,
Sem querer nada mais além de dar
Vida ao momento,
Que eu lhes ordenaria: vivam,
Quais rosas, no âmbar mágico, a compor,
Rubribordadas de ouro, só
Uma substância e cor
Desafiando o tempo.

Diz a ela que vai
Com a canção nos lábios
Mas não canta a canção e ignora
Quem a fez, que talvez uma outra boca
Tão bela quanto a dela
Em novas eras há de ter aos pés
Os que a adoram agora,
Quando os nossos dois pós
Com o de Waller se deponham, mudos,
No olvido que refina a todos nós,
Até que a mutação apague tudo
Salvo a Beleza, a sós.

Ezra Pound - Poesia

Fazes-me falta



Não importa o que se ama.
Importa a matéria desse amor.
As sucessivas camadas de vida que se atiram para dentro desse amor.
As palavras são só um princípio - nem sequer o princípio. Porque no amor os princípios, os meios, os fins, são apenas fragmentos de uma história que continua para lá dela, antes e depois do sangue breve de uma vida.

...


E eis-me preso à memória escura dos teus olhos, dos teus passos saltitantes, da tua alegria convicta que a partir de certa altura começou a açucarar demasiado a minha vida. Não consigo concentrar-me. Passo os dias com os olhos sobre as letras dos livros que tenho de ler e não consigo entrar neles. E ouço muitas vezes a canção de Pascoal:


"A sombra das nuvens no mar / O vento na chuva a dançar / Uma chávena a fumegar / Tudo me falava de ti / A sombra das nuvens desceu / O céu alto arrefeceu / E o mar bravio perdeu / A luz que lhe vinha de ti."
Há quanto tempo não me arde o coração?

Inês Pedrosa , in «Fazes-me Falta»

The Revolution Will Not Be Televised




You will not be able to stay home, brother.
You will not be able to plug in, turn on and cop out.
You will not be able to lose yourself on skag and skip,
Skip out for beer during commercials,
Because the revolution will not be televised.

The revolution will not be televised.
The revolution will not be brought to you by Xerox
In 4 parts without commercial interruptions.
The revolution will not show you pictures of Nixon
blowing a bugle and leading a charge by John
Mitchell, General Abrams and Spiro Agnew to eat
hog maws confiscated from a Harlem sanctuary.
The revolution will not be televised.

The revolution will not be brought to you by the
Schaefer Award Theatre and will not star Natalie
Woods and Steve McQueen or Bullwinkle and Julia.
The revolution will not give your mouth sex appeal.
The revolution will not get rid of the nubs.
The revolution will not make you look five pounds
thinner, because the revolution will not be televised, Brother.

There will be no pictures of you and Willie May
pushing that shopping cart down the block on the dead run,
or trying to slide that color television into a stolen ambulance.
NBC will not be able predict the winner at 8:32
or report from 29 districts.
The revolution will not be televised.

There will be no pictures of pigs shooting down
brothers in the instant replay.
There will be no pictures of pigs shooting down
brothers in the instant replay.
There will be no pictures of Whitney Young being
run out of Harlem on a rail with a brand new process.
There will be no slow motion or still life of Roy
Wilkens strolling through Watts in a Red, Black and
Green liberation jumpsuit that he had been saving
For just the proper occasion.

Green Acres, The Beverly Hillbillies, and Hooterville
Junction will no longer be so damned relevant, and
women will not care if Dick finally gets down with
Jane on Search for Tomorrow because Black people
will be in the street looking for a brighter day.
The revolution will not be televised.

There will be no highlights on the eleven o'clock
news and no pictures of hairy armed women
liberationists and Jackie Onassis blowing her nose.
The theme song will not be written by Jim Webb,
Francis Scott Key, nor sung by Glen Campbell, Tom
Jones, Johnny Cash, Englebert Humperdink, or the Rare Earth.
The revolution will not be televised.

The revolution will not be right back after a message
bbout a white tornado, white lightning, or white people.
You will not have to worry about a dove in your
bedroom, a tiger in your tank, or the giant in your toilet bowl.
The revolution will not go better with Coke.
The revolution will not fight the germs that may cause bad breath.
The revolution will put you in the driver's seat.

The revolution will not be televised, will not be televised,
will not be televised, will not be televised.
The revolution will be no re-run brothers;
The revolution will be live.


Gil Scott-Heron
http://www.youtube.com/watch?v=Ix6Kz-1ev-4&feature=related

Compreensão



Não me digas nada, vejo que me entendes, mas tenho receio dessa compreensão, tenho medo de encontrar alguém semelhante a mim e ao mesmo tempo desejo-o.

Sinto-me tão definitivamente só, mas tenho tanto medo que o isolamento seja violado e eu não seja mais o cérebro e a lei do meu universo.

Sinto-me no grande terror do meu entendimento, meio por que penetras no meu mundo;
e que, sem véus, tenha então que partilhar o meu reino.


Anaïs Nin do livro "A Casa do Incesto"

Viento




Intrépido y libre pasajero de la naturaleza
Vehículo del perfume de las flores
Música y ritmo de palmeras
Mutante escultor de nubes
Sabio sembrador de tierras
Crepitante alma del fuego
Amante cariñoso de las aguas.
Eres, en un tiempo, ira del demonio
Y en otro soplo divino de los dioses.


José Eduardo Mendes Camargo

quarta-feira, janeiro 27, 2010

Anda vem



Anda vem..., porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha --- rosa de lume?

Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.

Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!

E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
--- Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!

Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos...
Tenho saudades da vida!
Tenho sede dos teus beijos!


António Botto

Não sei... Se a vida é curta



Não sei... Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos tem sentido,
se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura...
Enquanto durar


Cora Coralina

Toma-me



Toma-me.
A tua boca de linho sobre a minha boca Austera.
Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.
Tempo do corpo este tempo. Da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.
Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu delinquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa

De púrpura. De prata. De delicadeza.


Hilda Hilst

terça-feira, janeiro 26, 2010

O corpo...



É pêssego
Tangerina
E é limão

Tem sabor a damasco
e a alperce

Toma o gosto da canela
de manhã
e à noite a framboesa que se despe

De maça guarda o pecado
e a sedução

Do mel
o açúcar que reveste

Do licor
a febre que no seu rasgão
me invade me inunda e me apetece

Mergulho depressa a minha boca
e bebo a sede
que em mim já cresce

Delírio que me enche
de prazer
tomando o ponto num lume que humedece

Devagar mexo sem tino
as minhas mãos

Provando de ti
o que de ti viesse
O anis do esperma
o doce odor do pão
que o teu corpo espalha e enlouquece


Maria Teresa Horta em "SÓ DE AMOR", 1999

La virginité revenue



Son sein s’était développé ces derniers temps
Son corps fut nouveau à mes yeux, son âme partit
comme une folle sur les nuages
Son torse avec ses lourdeurs n’est-il pas voué
A l’amour de l’homme et de la femme
Ses désirs n’ont-ils pas remonté de ses enfances
Voie Lactée n’est-elle pas couchée sur la nuit sans vent?
J’ai reconnu qu’elle était sûre, sa nudité étant entière
Et que son âme était l’égale de ses mains et que l’eau
ruisselait sur elle pour la laver,
Et que les odeurs montaient et que la lumière se taisait.
Une voix m’assura qu’elle était entièrement vierge
Enfin de sa douceur elle était enchantée.



Pierre Jean Jouve

You've got a friend



When your down and troubled
And you need a helping hand
And nothing, whoa nothing is going right.
Close your eyes and think of me
And soon I will be there
To brighten up even your darkest nights.
You just call out my name,
And you know whereever I am
I'll come running, oh yeah baby
To see you again.
Winter, spring , summer, or fall,
All you have to do is call
And I'll be there, yeah, yeah, yeah.
You've got a freind.
If the sky above you
Should turn dark and full of clouds
And that old north wind should begin to blow
Keep your head together and call my name out loud
And soon I will be knocking upon your door.
You just call out my name and you know where ever I am
I'll come running to see you again.
Winter, Spring, summer or fall
All you got to do is call
And I'll be there, yeah, yeah, yeah.
Hey, ain't it good to know that you've got a friend?
People can be so cold.
They'll hurt you and desert you.
Well they'll take your soul if you let them.
Oh yeah, but don't you let them.
You just call out my name and you know wherever I am
I'll come running to see you again.
Oh babe, don't you know that,
Winter Spring summer or fall,
Hey now, all you've got to do is call.
Lord, I'll be there, yes I will.
You've got a friend.
You've got a friend.
Ain't it good to know you've got a friend.
Ain't it good to know you've got a friend.
You've got a friend.


James Taylor
http://www.youtube.com/watch?v=_kkPeEGlJgY

segunda-feira, janeiro 25, 2010

A seda de uma alma



Nunca

falei com ela
sobre o amor
ou a morte

apenas um gosto cego
e um tacto surdo
corria entre nós
quando
dormíamos juntos

tenho de espreitar
para dentro dela
para ver o que usa no centro

quando dormia
com os lábios abertos
espreitei

e o que
e o que
pensam que
entrevi

estava à espera
de ramos
estava à espera
de um pássaro
estava à espera
duma casa
num grande e silencioso lago

mas o que vi
num contador de vidro
foi um par
de meias de seda

meu Deus
vou-lhe comprar essas meias
vou-lhe comprar

mas o que apareceria então
no contador de vidro
da pequena alma
seria algo
que não pode ser tocado
nem mesmo com o dedo de um sonho


Zbigniew Herbert retirado do livro "Escolhido pelas Estrelas"

Canto-te



II - Canto-te


Canto-te para que tu definitivamente
existas
Canto o teu nome porque só as coisas cantadas
realmente são e só o nome pronunciado inicia
a mágica corrente
Canto o teu nome como o homem fazia eclodir
o fogo do atrito das pedras
Canto o teu nome como o feiticeiro invoca
a magia do remédio
Canto o teu nome como um animal uiva
de
Como os animais pequenos bebem nos regatos depois
das grandes feras
Canto-te
e tu definitivamente existes nos meus olhos
Sempre abertos porque é sempree os meus olhos
são os olhos da criança que nós somos sempre
diante da imensidão do teu espaço

Canto-te
e os meus olhos sempre abertos são a pergunta
instante pendente de eu te interrogar

e interrogo as coisas em seu ser noctumo
em seu estar sombriamente presentes na tua claridade
obscura
E como é sempre
meus olhos abertos prescrutam-te

símbolo de tudo o que me foge
como apertar o ar dentro das mãos
e querer agarrar-te

oh substância
Canto-te

com a fragilidade de tudo que existe perante
uma eternidade demasiado nocturna para os nossos
olhos infantis perante a tua antiguidade
futura
E a nossa voz é uma pequena onda no dorso
do teu oceano de matéria
Um leve arrepio apenas na espantosa espessura
de teu éter
Ah no ar é que tudo acontece
no ar nocturno das idades esquecidas
que previamente desconheceremos
No espaço é que tudo acontece
e o espaço é uma grande muito quieta
onde os nossos olhos penetram
no não sabermos até onde
ali
além
no além onde tudo acontece
Oh
oh espaço de tudo ser tão ligeiro e impalpável
e sermos nós a respiração da
teu bafo ritmado
imperceptível distância
Oh augusta majestática dignidade do silêncio
Oh impassibilidade da tua mecânica celeste
Oh organismo primeiro de todos os fins secretos
da compreensão das coisas
Oh inorgânico organismo dos seres
que se devoram
Oh diz
a quem servimos nós de pasto
Canto-te
como quem pronuncia o Mantra esotérico do teu nome
Canto-te e grito
para que a poeira que se infiltra em todas as
coisas se erga de ti como um plâncton
Oh Madre
matriz das criaturas inferiores que rastejam
a teus pés cobertas de pó
esse pó que a cada momento ameaça submergir-nos
Oh aranha enorme tecendo tua teia de pó
Oh que desintegras tudo e tudo tu constróis
Ah como nós lambemos tuas duras mãos
Oh que fustigas nossos olhos com tua sombra
Enorme
Oh
que deixas tanto espaço para o silêncio
das mil pétalas
dos mil braços esplendorosos em seu abandono
dos murmúrios
dos afagos
sangue derramado sobre o mundo
Oh
Porque és sempre tão premente?
e sempre estás ausentemente
na tua constância em todas as coisas?

Oh sono
Oh morte tão desejada e longa
mágica povoada de átomos
milhões de espíritos enchem o teu sopro
E penetras em nós como uma bala
E tudo morre quando tu chegas
E tudo se dilui e se transforma em ti
alada presciência de tudo acontecer
tão longe de nós e tão antigamente
e tudo nos ultrapassar com soberana indiferença
ante os nossos olhos cegos pelo teu negrume
Oh
brilha para dentro de mim
Acende teus luzeiros em meus olhos
Ergue teus braços oh prenhe de tudo
Oh vaso
Oh via láctea de nos amamentares com teu leite
de sombra
Oh úbere e pródiga
Aleita tua ninhada faminta
Grande fera luzidia
Grande mito
Grande deus antigo
Oh urna onde todos dormimos
Oh
Meus olhos choram já de tanto prescrutar-te
E canto-te
Canto-te
Para que tu existas
E eu não veja mais nada além de ti
E nada mais deseje senão que venhas outra vez
levar-me para dentro do teu ventre
de nunca mais haver
E nada mais haver que
Oh tu definitivamente além


Ana Hatherly
Poemas de Eros Frenético e Contemporâneos
Um calculador de improbabilidades

sábado, janeiro 23, 2010

O Vazio







“O verdadeiro vazio não tem nenhuma religião, seita, nem qualquer doutrina.
Enquanto estivermos agarrados a conceitos, mesmo que sejam sobre a iluminação, o Buda ou o Caminho Aberto, estamos prisioneiros da nossa consciência e a verdadeira compaixão não poderá agir.
O verdadeiro acto de compaixão tem a sua origem aquém da mente consciente e individual. Nunca poderá ser gerado ou motivado por desejos pessoais.”

Hôgen Daidô Yamhata

sexta-feira, janeiro 22, 2010

Ah, diz-me a verdade acerca do amor



Há quem diga que o amor é um rapazinho,

E quem diga que ele é um pássaro;
Há quem diga que faz o mundo girar,
E quem diga que é um absurdo,
E quando perguntei ao meu vizinho,
Que tinha ar de quem sabia,
A sua mulher zangou-se mesmo muito,
E disse que isso não servia para nada.

Será parecido com uns pijamas,
Ou com o presunto num hotel de abstinência?
O seu odor faz lembrar o dos lamas,
Ou tem um cheiro agradável?
É áspero ao tacto como uma sebe espinhosa
Ou é fofo como um edredão de penas?
É cortante ou muito polido nos seus bordos?
Ah, diz-me a verdade acerca do amor.
Os nossos livros de história fazem-lhe referências
Em curtas notas crípticas,
É um assunto de conversa muito vulgar
Nos transatlânticos;
Descobri que o assunto era mencionado
Em relatos de suicidas,
E até o vi escrevinhado
Nas costas dos guias ferroviários.

Uiva como um cão de Alsácia esfomeado,
Ou ribomba como uma banda militar?
Poderá alguém fazer uma imitação perfeita
Com um serrote ou um Steinway de concerto?
O seu canto é estrondoso nas festas?
Ou gosta apenas de música clássica?
Interrompe-se quando queremos estar sossegados?
Ah! diz-me a verdade acerca do amor.

Espreitei a casa de verão,
E não estava lá,
Tentei o Tamisa em Maidenhead
E o ar tonificante de Brighton,
Não sei o que cantava o melro,
Ou o que a tulipa dizia;
Mas não estava na capoeira,
Nem debaixo da cama.

Fará esgares extraordinários?
Enjoa sempre num baloiço?
Passa todo o seu tempo nas corridas?
Ou a tocar violino em pedaços de cordel?
Tem ideias próprias sobre o dinheiro?
Pensa ser o patriotismo suficiente?
As suas histórias são vulgares mas divertidas?
Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

Chega sem avisar no instante
Em que meto o dedo no nariz?
Virá bater-me à porta de manhã,
Ou pisar-me os pés no autocarro?
Virá como uma súbita mudança de tempo?
O seu acolhimento será rude ou delicado?
Virá alterar toda a minha vida?
Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

Janeiro, 1938
W.H. Auden

quinta-feira, janeiro 21, 2010

Lullaby



Lay your sleeping head, my love,

Human on my faithless arm;
Time and fevers burn away
Individual beauty from
Thoughtful children, and the grave
Proves the child ephemeral:
But in my arms till break of day
Let the living creature lie,
Mortal, guility, but to me
The entirely beautiful.

Soul and body have no bounds:
To lovers as they lie upon
Her tolerant enchanted slope
In their ordinary swoon,
Grave the vision Venus sends
Of supernatural sympathy,
Universal love and hope;
While abstract insight wakes
Among the glaciers and the rocks
The hermit's sensual ecstasy.

Certainty, fidelity
On the stroke of midnight pass
Like vibrations of a bell,
And fashionable madmen raise
Their pedantic boring cry:
Every farthing of the cost,
All the dreaded cards foretell,
Shall be paid, but from this night
Not a whisper, not a thought,
Not a kiss nor look be lost.

Beauty, midnight, vision dies:
Let the winds of dawn that blow
Softly round your dreaming head
Such a day of sweetness show
Eye and knocking heart may bless,
Find your mortal world enough;
Noons of dryness see you fed
By the involuntary powers,
Nights of insult let you pass
Watched by every human love.


W.H. Auden

(Je vis un arbre)




Je vis un arbre dans un oiseau. Celui-ci le réfléchissait tout entier et
une brise infiniment légère en assouplissait seulement l’extrême bord des feuilles.
L’oiseau était immobile et grave.
C’était un matin clair, sans soleil, un matin qui ne dévoile rien encore
de la journée à venir, ou très peu. Moi aussi, j’étais calme. L’oiseau
et moi, nous nous entendions, mais à distance, comme il convient à des
êtres d’espèce animale, ayant eu, sans retour possible, une évolution
parfaitement divergente.

Henri Michaux

quarta-feira, janeiro 20, 2010

A Vida Responsável



Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.

Madrugar outra vez e ter cuidado
em não dizer inconveniências,
esmerar-me na prosa de umas folhas
e estou-me nas tintas para elas,
retocar de vermelho cada face.

Lembrar-me da consulta ao pediatra,
responder ao correio, estender roupa,
declarar rendimentos, ler uns livros,
fazer umas chamadas telefónicas.

Bem gostaria de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que quisesse
para fazer só coisas esquisitas,
coisas desnecessárias, prescindíveis
e, sobretudo, inúteis e patetas.

Por exemplo, amar-te com loucura.

Amalia Bautista
trípticos espanhóis vol. III

Janela da alma



Quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


Cecília Meireles
em A Arte de Ser Feliz

Nas tuas mãos (excerto)




“Vem para dentro de mim, não tenhas medo.”


"O amor não tem portas que possamos abrir e fechar, nem passagens secretas para um sótão onde possamos fazer férias dele. Toma conta de tudo em nós, envolve-nos como um lençol de tédio, sedoso, infindo. Ninguém fala deste tédio sublime, tão contrário à acção e à eficácia, imóvel inimigo do progresso do mundo. Só no trono do sonho, iluminado e funesto, o amor interessa. Prolongada, a vida torna-se demasiado curta e o amor ganha o ritmo da chuva que bate leve, levemente.

Habituámo-nos a tratar os amores como electrodomésticos: quando se escangalham, vamos ao supermercado comprar um novo, igualzinho ao que o outro era. Consertar? Não compensa: o arranjo sai caro, além de que nunca se sabe muito bem onde procurar a peça que falta. Substituímos a eternidade pela repetição, e o mundo começou a tornar-se monótono como uma lição de solfejo. Tememos a maior das vertigens, que é a da duração. Mas no fim de cada sucesso há um cemitério como o de Julieta e Romeu, apenas com a diferença da aura, que é afinal tudo. As pessoas morrem cada vez mais velhas e cansadas de correr, e os seus cadáveres tensos soçobram de ridículo sobre a terra das suas efémeras conquistas."


Inês Pedrosa
Nas tuas mãos

terça-feira, janeiro 19, 2010

O Sorriso




Creio que foi o sorriso,

0 sorriso foi quem abriu a
porta.
Era um sorriso com
muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa,
ficar
nu dentro daquele
sorriso.

Correr, navegar, morrer
naquele sorriso.



Eugénio de Andrade

Então quem sou eu?

Então quem sou eu?

Digam-me isso primeiro,
e depois,
se eu gostar de ser essa pessoa,
eu subo;
senão,
fico cá em baixo
até ser outra pessoa qualquer.

 


lewis carroll
alice no país das maravilhas

Encosta-te a mim


Encosta-te a mim,nós já vivemos cem mil anos
encosta-te a mim,talvez eu esteja a exagerar
encosta-te a mim,dá cabo dos teus desenganos
não queiras ver quem eu não sou,deixa-me chegar.
Chegado da guerra, fiz tudo p´ra sobreviver
em nome da terra, no fundo p´ra te merecer
recebe-me bem, não desencantes os meus passos
faz de mim o teu herói, não quero adormecer.
Tudo o que eu vi, estou a partilhar contigo
o que não vivi, hei-de inventar contigo
sei que não sei, às vezes entender o teu olhar
mas quero-te bem, encosta-te a mim
Encosta-te a mim, desatinamos tantas vezes
vizinha de mim, deixa ser meu o teu quintal
recebe esta pomba que não está armadilhada
foi comprada, foi roubada, seja como for.
Eu venho do nada porque arrasei o que não quis
em nome da estrada onde só quero ser feliz
enrosca-te a mim, vai desarmar a flor queimada
vai beijar o homem-bomba, quero adormecer.
Tudo o que eu vi, estou a partilhar contigo
o que não vivi,um dia hei-de inventar contigo
sei que não sei, às vezes entender o teu olhar
mas quero-te bem, encosta-te a mim





Jorge Palma



http://www.youtube.com/watch?v=Tu9HPz__3ys&feature=fvw

Dois amantes



Dois amantes felizes fazem um só pão,
uma só gota de lua sobre a erva,
deixam andando duas sombras que se juntam,
deixam um único sol vazio numa cama.

De todas as verdades escolheram o dia:
não se atavam com fios, mas com um aroma,
e não despedaçaram a paz nem as palavras.
A alegria é uma torre transparente.

O ar, o vinho, vão com os dois amantes,
a noite dá-lhes as suas pétalas felizes,
têm direito aos cravos que apareçam.

Dois amantes felizes não têm fim nem morte
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.


Pablo Neruda, in"Cem sonetos de amor"

segunda-feira, janeiro 18, 2010

Touched by An Angel


We, unaccustomed to courage

exiles from delight

live coiled in shells of loneliness

until love leaves its high holy temple

and comes into our sight

to liberate us into life.



Love arrives

and in its train come ecstasies

old memories of pleasure

ancient histories of pain.

Yet if we are bold,

love strikes away the chains of fear

from our souls.



We are weaned from our timidity

In the flush of love's light

we dare be brave

And suddenly we see

that love costs all we are

and will ever be.

Yet it is only love

which sets us free.



Maya Angelou

Escuta, Zé Ninguém


Escuta, Zé-ninguém: já há muito que andava para te dizer umas coisas. Mas tu só dás ouvidos aos grandes, gostas de te sentir submisso. Afinal, o que farias se te visses livre? És um pobre coitado, medroso, cobarde, ignorante e naturalmente deprimido. Desprezas-te a ti e aos outros, meu enfermo maldito.

E se te interrogo, respondes-me: «mas que posso eu fazer?». És assim e não queres ser diferente. Aliás, a mudança arrepia-te e perturba-te a segurança medíocre que cuidadosamente alimentas dia após dia. Meu desgraçado, quem és tu para teres direito a opinião própria? Em casa dás pancada na mulher e nos filhos, na taberna embebedas-te como um porco e ainda te restam forças para conspirares contra mim! Que hei-de fazer, meu grande malandro? Não tens onde cair morto nem vivo. Cultivas a tacanhez, a cobiça e a inveja como um jardineiro planta as ervas daninhas no seu próprio jardim. És assim porque queres, meu grande cão. Enquanto queimas criaturas em fornalhas contínuas a responder-me: «mas que posso eu fazer?». Não percebes, meu aldrabãozeco, que todos os grandes pecados da humanidade começam nos pequenos actos tolos que cometes no teu dia-a-dia!? Sim, Zé Ninguém, tu mesmo, estou a falar contigo. Chamas-me utópico e intelectualzinho de merda enquanto tu vives na miséria, matas a própria esperança e a dos teus filhos e ainda berras «Vivas». Ao sábio chamas larápio e gritas: «Agarra que é judeu, agarra que é preto, agarra que é marroquino». Gritas porque tens medo, meu energúmeno narcísico. Pensas sempre na satisfação dos teus pequeninos prazeres e nunca no bem geral.

És assim, Zé Ninguém. «Que posso eu fazer?». Preferes a tasca a uma biblioteca, a televisão a uma passeio com os teus filhos, a jogatina a uma noite de amor com a tua mulher. És incapaz de criar, de dar sem receber e vais sobrevivendo com a parcelazeca do teu quinhão de ouro. Sofres de peste mental, meu ladrãozeco de queixumes: «Ai que me dói uma perna, aí que me dói uma unha, aí que estou tão mal, aí que ninguém sofre tanto como eu, mas que hei-de eu fazer?». És assim, Zé Ninguém. Veneras os teus inimigos e matas os teus amigos. Mas afinal, porque desistes dos teus sonhos Zé Ninguém? Ah animal, soubesse eu calar a tua voz interior de uma vez por todas!


Wilhelm Reich, 1974

O segredo da Flor de Ouro



O inconsciente, é projectado no objecto, e o objecto introjectado no sujeito, isto é, psicologizado. Animais e plantas comportam-se como seres humanos, os seres humanos também são animais; deuses e espectros animam todas as coisas. O homem civilizado considera-se naturalmente bem acima destas coisas.

No entanto, não raro, passa a vida inteira identificado com os pais, com seus afectos e preconceitos, culpando impudicamente os outros pelas coisas que não se dispõe a reconhecer em si mesmo. E guarda também um remanescente da inconsciência primitiva da não-diferenciação entre sujeito e objeto. Por isso mesmo é influenciado magicamente por inúmeros seres humanos, coisas e circusntâncias, isto é, sente -se assediado de modo irresistível por forças perturbadoras, muito apreciadas como as dos primitivos; do mesmo modo que estes últimos, necessita de encantamentos ou feitiços apotropaicos. Ele não manipula mais com amuletos, bolsas medicinais e sacrificios de animais, porém com soporíferos, neuroses, racionalismo, culto da vontade, etc.


O segredo da flor de ouro
C.G.Jung/R.Wilhelm.

O Beijo - Gustav Klimt


Toma-me


Toma-me.

A tua boca de linho sobre a minha boca Austera.

Toma-me AGORA, ANTES

Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes

Da morte, amor, da minha morte, toma-me

Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute

Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo. Da fome

Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,

Um sol de diamante alimentando o ventre,

O leite da tua carne, a minha

Fugidia.

E sobre nós este tempo futuro urdindo

Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida

A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.

Te ordenas. E eu delinqüescida: amor, amor,

Antes do muro, antes da terra, devo

Devo gritar a minha palavra, uma encantada

Ilharga

Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar

Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo

Imensa


De púrpura. De prata. De delicadeza.



Hilda Hilst

Gentileza gera gentileza...


Dedicado a Gentileza (José Datrino, 11.04.1917-29.05.1996), com o propósito de ajudar a preservar sua história e sua mensagem.


Bilhete do Kaos

terça-feira, 4 de fevereiro de 1964


S.W. (isto é, Samuel Wainer) disse pra mim: "Escreve o que você quiser". E eu disse: "Está bem". Eis aí o que escrevo.

1
JOSÉ Roberto Aguilar, pintor amigo meu, disse que era preciso comer excrementos. Até hoje, comi excrementos, suor, sangue, raiva. Deste caldeirão é que é feita a vida moderna. Mais alguns nacionalismos e tudo vai bem.

2
A ERA da tragédia é que virá, e não a era idealista de Erich Fromm, que causa o delírio da burguesia média. Norman Mailer está muito mais próximo da verdade do que o psicólogo suíço.

3
OUTRO DIA quase bateram na filha do Miguel Arraes numa festa de gente de bem. Quem a mandou doutrinar em ambiente de milionários? Mas ela só tem 16 anos! Idealismo louco de crian-ça que quer transmitir o que sente, mas não vê a realidade das situações. Pernambuco tem uma dança, que nenhuma terra tem...

4
BRIGITTE BARDOT é bárbara. Seu corpo é uma sinfonia brejeira de jazz e mar carioca. Por isto ela gostou tanto do mar. O de Saint Tropez é muito europeu, civilizado. Ela quer selvageria latina e tropical. Na imaginação dos estrangeiros oriundos de países super-desenvolvidos, terras como a nossa representam a selva, o novo, o caldo da vida. Os países super-desenvolvidos já estão gastos, podres: aqui estaria o maná. Ignoram nossa fome. Mas esta é outra conversa.

5
POIS BEM: BB quer o novo, o mar selvagem e o povo misterioso e erótico (somos nós). No fundo ela quer ser rasgada, destroçada, despedaçada, apalpada pela multidão. Mas ao mesmo tempo tem medo. Ela vive no abismo irreal da fama que o cinema lhe criou. Ela está lá em cima e, ao mesmo tempo, aqui muito embaixo. É uma criança com muito sexo que não deixou de ser criança. Suas carnes balançam e sua voz quente é a voz dos infernos. Ela vive no nada. No vácuo. Ah! Marilyn Monroe! Vítimas da engrenagem vampiro deste mundo falso. Mas no fundo de tudo, existe a luz, e BB veio procurá-la aqui no Brasil. Tomara que Bob Zagury a conduza para os caminhos do encontro com esta luz.quarta-feira,

5 de fevereiro de 1964

1
ARACY DE ALMEIDA agarra o microfone e canta. A voz dela tem milênios de sofrimento e a alma do Noel Rosa. Depois ela xinga muito. Cada palavrão rola de sua boca! Apelido: Araca. Sua dramaticidade é telúrica. Comove além da emoção: já é instinto. Onde anda ela? Bossa nova abstrata acabou com a minha Araca? Às vezes ela tem jeito de moça de fábrica com toda a melancolia do samba Três Apitos.

2
GUAXUPÉ, Minas Gerais. O milionário Mário Ribeiro Lima tem uma paixão especial: a de domar éguas selvagens a pelo. Caiu cinco vezes da égua endemoniada. Na primeira quebrou o braço, mas continuou a domar a fera. Só descansou quando a égua também se machucou ferindo a pata numa pedra pontuda e jorrando sangue a valer, que um cachorro lambia. Eu vi tudo isso e posso afirmar que era uma cena quase surrealista. Ainda por cima surgiu uma Folia de Reis com suas cantorias místicas. Isto foi na velha Minas Gerais. Mário ficou tão desesperado que tirou sua camisa e enrolou com ela a pata ferida da égua. Chorava desesperado ao ver a égua machucada. Coisas de cavaleiro, famílias mineiras, e verões doidos.

3
DEPOIS da revolução econômica virá a existencial: a revolução existencial é o "kaos".

sexta-feira, 7 de fevereiro de 1964

1
O PLAYBOY é um louco. Um fruto da agonia contemporânea. Não lhe faltam, porém, os atributos mágicos do esplendor, do fascínio. Quero dizer que ele é bacana. Em toda sua nojentice, farsa, trapaça, tem algo de grandioso. Até hoje não descobri o que é. Será o simples humano? Uma réstia de heroísmo? Juventude? Carne jovem tão jovem nos caminhos sem bem ou mal? O que é? O que o move é a ânsia pelo perigo. O desejo sado-masoquista de bater e ser torturado pela polícia. No fundo é um monstro-herói. Quer sangue e escuridão. Mas no fundo deseja amor e carinho. Uma espécie de embriagado.

2
O QUE MAIS me alucina é que eles são bebês! Vendendo sua carne ao tempo. Em suas blue-jeans azuis ao vento, cabelo despenteado, gestos eternamente sexuais, brutalidade condensada e um lirismo piegas por baixo de toda esta fogueira de ódio. Um herói dos tempos modernos. E não se iludam: o playboy não desaparecerá! Mesmo lá na URSS, novas hordas de juventude desenfreada ameaçam o austero PC. Evtuchenko é o mais lírico deles. E os "beatniks" nos USA? A Europa mergulhada nos "angry" e "blousons noirs"? É esta a revolução em marcha. A revolução da juventude pelos caminhos da tragédia. Porque, num futuro não muito longínquo, vira a era do KAOS. O tédio, o sexo, a angústia. Eis a trindade do futuro! Todos serão heróis! As novas contradições da História trarão o caos das paixões. As energias domadas pela coletividade farão ressurgir para todos o destino trágico, a agonia pública, o desvario institucionalizado, o choque total da paixões humanas no plano do absurdo. Novo existencialismo, se quiserem os que são doentes por dar nomes a tudo. Como dar nome a um rio de fogo? Só se for este novo: KAOS.

3
O IRRACIONALISMO já dá seus frutos. Após a revolução industrial, tanto nos EUA como na URSS e depois em todos ou outros países, surgirá a era da tempestade. O reinado da tragédia. O dia da tristeza não-pessimista, o dia da tristeza positiva encarnada na chuva que goteja sobre o mundo e as coisas e os seres no galope desenfreado da vida.

4
OS POETAS são uma multidão de fracos a carregar tochas para iluminar a escuridão que nos apavora.

sábado, 8 de fevereiro de 1964

1
POR AQUI sopra o vento do Senhor. Creio em Arigó e em Canudos. Na Umbanda e em todos os ritos desta terra formidável. Creio na Igreja Católica e no Universo como um grande cosmos, onde tudo se desenrola sem direção. Relatividade total. Espaço-tempo. Kaos. Por isto peço: não persigam Arigó. Ele é um messias dessa terra santa. Não o persigam.

2

UM PLAYBOY rico e triste (é sempre assim) cheirava gasolina e se deliciava com isso. Outro tomava bolinhas mesmo. E eu no meio deles (sem me querer fazer de santo) bebia água. Por que emporcalhar o mundo com meia dúzia de juízos e conceitos? A vida é muito mais que um amontoado de sínteses! É vento, lama, sangue!

3
DURANTE um século gritaram-me nos ouvidos que as mulheres querem é casar. Na prática (ou praxis, como pretendem os marxistas) verifiquei que é justamente o oposto. Elas querem é anarquia.

4
SOBRE a frieza das mulheres, aparentemente o problema não existe no Brasil. É também um pouco tabu. Mas atrai muita gente.

5
LEÃO PÉRSIO, pintor abstrato, é um sujeito sisudo. Mineiro sei que é assim. Passou oito meses comendo mel e torradas. Promessa? Angústia? Sei lá. Só sei que depois da penitência voltou o mesmo. Mistério artístico.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 1964

1
MAISA, quando a conheci, ela estava linda e me disse: "Eu sei que vou morrer no ano que vem". Argumentei: "Mas como é que você sabe uma coisa dessas?" E ela, rindo, respondeu: "É porque se não morrer, eu me mato".

2
ESQUERDAS: há uma grande confusão de esquerdas no país e, inclusive, muita gente nem sabe o que é isto. Mas a nova geração saberá, se não sabe, quer saber. Longe de me fazer cronista político, quero somente às vezes ilustrar certos fatos políticos, pois política é muito importante e essencial. Principalmente no Brasil e no mundo de hoje. Perguntaram ao Miguel Arraes porque tinha abandonado a poesia. E ele respondeu: "Porque descobri que a maior poesia é a política". Ouvi esta definição de política-poesia também da boca do vereador do PTB, o Odon. Enfim, cada artista defende sua arte. Há muitas esquerdas. E no fundo uma só. Qualquer hora eu volto ao assunto.

3
ME DERAM o cano um milhão de vezes nos mais variados negó-cios. Eu, porém, nunca desisto. Vou em frente. Outro dia sonhei com uma mulher. Ela estava num jardim escuro e falou para mim: "Mas Jorge, eu só te traí vinte vezes!"

4
NORMA BENGUEL estava no Sebastião Bar ouvindo a bossa de lá. O Sebastião Bar é um bar diferente. Invenção do monge maldito Paulo Cotrim, que fez daquilo uma mistura de Espiritualismo + Paganismo. De Roma + Grécia. E tem sensualismo, frustração, bossa. Sofisticado é o ambiente e bonitas mulheres da alta burguesia sentem-se possuídas, os demônios entram dentro delas, mil cavalos de exu, e então fazem coisas demoníacas. Um pedaço de Europa em São Paulo. De Paris, de Roma. Cotrim, o dono do bar, porém, é nacionalista.

5
O CINEMA acabou com a literatura? É o que me disseram mais de mil vezes. Chegaram para mim os cineastas de ray-ban na cara, falando: "Pára de escrever. O negócio é cinema!" E eu fico matutando. Será?

quarta-feira, 4 de março de 1964

1
SENHORES, o pau vai comer. O melhor é ir para a Suíça. Meu companheiro levou borrachada no lançamento da Frente de Mobilização Popular. Fica mais do que claro que a direita passa para a ofensiva. Ofensiva do desespero. Do ódio. Quando se enfia a faca no porco ele grita.

2
ADHEMAR compra tanques para acabar com greves e revoltas populares. Acho certíssimo dentro da obra da direita. Eles tem que acabar com a democracia.

3
BIDAULT, o extrema direita inimigo do general De Gaulle que está exilado no Brasil, é quem dirige os grupos fascistas da reação. Eles estão sendo organizados por Bidault. Assim, teremos uma direita francesa.

4
NO VIETNAME o negócio parece que vai pegar fogo. Guerra no Sul da Ásia. E quem sabe se algumas potências não se interessam por alguma guerrinha no Brasil? Seremos uma segunda Coréia.

5
PERGUNTEI a um guarda: "Você atira no povo?" Ele me olhou com olhos tristes.

6
LACERDA tem muitas metralhadoras e a nossa esperança ainda é Jango e a democracia. O golpe da direita está sendo bem preparado. Invernadas estão sendo construídas. Campos de concentração. E sei de várias listas negras. Hitler levou um dia para acabar com os esquerdistas. Tiros na nuca. É fácil.

7
"OU É O ESCUDO dourado dos germanos, ou a escuridão do bolchevismo asiático". Adolf Hitler.8 QUE A PAZ ilumine os desesperados, que Deus tenha sua suprema misericórdia, tenha piedade deste Brasil, terra do futuro e da esperança. Que os meus olhos proféticos de escritor trágico se enganem quando prevêem um mar de sangue por este continente.

segunda-feira, 9 de março de 1964

1
A ETERNA dúvida do homem é: ir ou não ir para a tempestade. Muita gente acha abrigo na casa da grande mãe. É melhor refugiar-se no seguro, do que enfrentar o abismo. Sei que vão dizer (os bitolados) que isto é idealismo negativista, ou qualquer nome idiota. Mas não me importa. Há muito que não me importo mais com os meus inimigos superficiais, que encontraram em alguma organização da teoria a paz para os seus complexos de frustração. Eu, pelo menos, não descanso, não me perdôo. A floresta é o grande perigo. É lá que estão as feras e o grande mel, a fonte rodeada de avencas e o sexo que é mais profundo e colorido quando a chuva cai serena e triste sobre a mata.

2
AS GOTAS de chuva são o choro de mil velhas morrendo de chorar, lá no céu. É a água que une a terra com o céu há milhares de anos e é a tristeza do mundo refletida. É o grande espasmo da natureza. O colossal infinito reino dos deuses.

3
É PRECISO ter a postura trágica do herói, é preciso saber renunciar um milhão de vezes e retomar a marcha um milhão de vezes. Mesmo que isto custe muitos inimigos, muitos mortos.

4
PARA onde nos conduzirá esta estrada? Vivemos dia a dia presos pelo terror. Terror de tudo, da guerra, da luta social. Agora o Partido Comunista decidiu esquecer a luta de classe por momentos. Lacerda retomou a luta de classe e é um ortodoxo. Reduziu tudo a termos de classe e usa o neo-capitalismo.

quinta-feira, 12 de março de 1964

1
COMO NÃO SOU colunista nem observador político, mas mitólogo e profeta, posso profetizar: estão tramando contra a vida de nosso presidente! A vida de João Goulart corre perigo como a de Getúlio. As mesmas forças de reação estão tentando assassinar o nosso presidente, assim como assassinaram o presidente Kennedy! O atentado está sendo preparado cuidadosamente! Peço a todos os brasileiros e democratas que rezem para que Deus proteja nosso presidente!

2
O HOMEM sempre necessita do mito. E, quando ele chega lá dentro do seu Eu profundo, nasce para um novo mito. Para uma nova conceituação do Universo em que todas as filosofias se encontram. Em que cristianismo verdadeiro (e consequentemente sempre de vanguarda) se encontra com o marxismo (não a bitolação sectária) e com a antologia de todas as meditações e formas de atingir a Iluminação. É aí que não existe nem bem nem mal. Mas só o amor que também destrói, mas destrói para construir, sempre construir destruindo, num ritmo eterno e terrível.

3
QUANDO ataco os sectários é bom que se diga o que entendo por sectário. Sectário, para mim, é o bitolado que se aferra a um dogma qualquer. Não importa qual seja. Há sectários em todos os partidos e credos religiosos. É a TODOS que combato. Quero o grande diálogo, a grande abertura, e hoje mais do que nunca este diálogo se faz necessário.

4
ATACO, portanto, os sectários de todo lugar, de Roma a Pequim, passando por São Paulo. Os que não querem o diálogo, os que têm preconceitos.

5
ESTAMOS num período lindo, enterrados o fascismo e o stalinismo, dois representantes da nova Idade Média; estamos num período de nova Renascença que se inicia timidamente, com a morte das burocracias, rumo à sociedade sem classes. Será que sou muito sonhador? Mas sou profeta e é preciso profetizar. Que bonito às vezes, em noites de lua e verão, caminhar pelas ruas cheias de árvores! Um bilhão de estrelas borbulham no céu e o calor que existe no espaço é denso. As casas iluminadas brilham, possuídas interiormente por um luz amarela e quente. Tudo é calor, vontade de tomar a divina água pura e gelada. De repente caí uma chuva e o rio corre pelas ruas.

sexta-feira, 13 de março de 1964

1
A DEMOCRACIA é a coisa mais formidável que existe. Só nela é que se goza da total disponibilidade de ir para onde se quiser. Só no sistema democrático conseguiremos fluir. A democracia com seus mitos, suas alucinações e defeitos, ainda é o melhor dos sistemas, mesmo porque em outro sistema me proibiriam de existir e escrever como escrevo. Minha obra é a disponibilidade total. Só obedeço às forças primordiais da paixão humana, dos elementos da natureza e do meu instinto.

2
E TUDO ISTO é trágico e terrível. Vocês já notaram como eu gosto de usar estas duas palavras: trágico e terrível. Terrível é bíblico, tem cheiro de milagre e coisa que surge. Trágico é pagão com todo o estoicismo inerente ao termo e à postura do homem pagão.

3
PERGUNTA freqüente: esta coluna o que é? É valida ou não? Perguntas estúpidas. Ela é o que é. É o fluir contraditório da vida.

4
FALO da democracia. E o fascínio de um ditador? Nós aqui tivemos um começo de ensaio de ditador e fascínio. E todo mundo caiu, até eu! Ele era místico, magnetizava. Quando falava era todo o povo que falava. Não preciso dizer nomes. Ainda está por aí. Gozado: em outros países o fim de um homem trágico é um fim trágico. Aqui não, é a renúncia. Em tudo se dá um jeitinho. Até a tragédia no Brasil é amenizada.E paradoxo: Getúlio, que foi positivista, avesso a todo e qualquer romantismo, suicidou-se. Foi o suicídio mais genial da História, o mais produtivo. Com seu sangue Getúlio fez a política brasileira dar a reviravolta. De perseguido passou a mártir, e com isto todo o PTB. Até hoje. Foi um dos maiores homens da história brasileira. Trágico, pairava por cima dos messianismos momentâneos. Sorria, charuto na boca, ironia em tudo. Ironia, ironia. A lei era a lei.

segunda-feira, 16 de março de 1964

1
O ROCK’N’ROLL foi uma libertação sexual. Elvis Presley um símbolo de libertação de uma sociedade puritana como a dos Estados Unidos. James Dean — o herói trágico necessário em todos os mitos — fez o papel de Dionísio. O sacrificado. Aquele que voltará, ressuscitado. "James Dean não morreu!" Observadores superficiais e gazás moralistas gritaram que isto era a decadência, ou mais uma das provas da decadência. No entanto, o mundo emergirá justamente para esta era trágica e pagã, de uma nova síntese que vai sendo lentamente plasmada.

2
O ROCK era triste, heróico, nostálgico. Jamais um povo puritano poderia suportar por muito tempo a existência desta música dionisíaca porque esta o levaria para uma introspecção sombria e para o desespero. Logo então se criou o anti-rock, o anti-dionísio, que é o twist. E na superficialidade doce e rococó do twist perdeu-se toda a tragédia, fatalidade e amargura do rock perigoso. A libertação do orgasmo sexual traria grandes perigos para uma sociedade alienada como a dos Estados Unidos.

3
FOI PARA debelar este perigo que puseram fim à música instintiva do rock. É por isto que o movimento beatnik é altamente positivo e combativo, ridicularizado pelas fontes artificiais estadunidenses. Pergunto pelo Norman Mailer e os americanos me respondem com um sorriso de mofa: "É um escritor da moda".

4
SÓ POR CAUSA do seu marxismo-sexualista (que horroriza também os sectários do lado de cá). Outro dia um comuna sectário, quando lhe falei do grande Norman Mailer, respondeu com seus olhinhos de presépio brilhando: "O que esfaqueou a esposa?". Gagá moralista, entrave dos piores à revolução.

5
ENFIM, os imbecis do mundo se dão as mãos. É por isto que a sociedade capitalista decretou guerra aos instintos. A grande libertação do kaos. E o mundo socialista só entrará definitivamente no socialismo quando empreender esta libertação dos instintos e entrar na era do kaos. Até agora está ainda longe disto. Mas tenho fé. Já se notam sinais promissores. A vanguarda gloriosa do novo empreenderá a total libertação.

terça-feira, 17 de março de 1964

1
QUE é um disco voador? Tinha um psicólogo Jungiano que dizia que o disco era uma psicose coletiva em que todos projetavam a salvação. O homem moderno, angustiado, procurava criar um novo mito, já que os velhos haviam falhado. Disco voador para mim é de outro planeta. Que lindo, parece um pedaço de sol, uma lua fria, um pedaço de saudade e mar. Tudo isto é o disco voador trazendo em seu bojo um bilhão de gotas de chuva. O disco voador é a abertura para o desconhecido. Carl Jung. É a felicidade. A última esperança. Fora a reforma agrária.

2
TUDO o que se tem dito sobre o playboy é superficial. Claro que há uma grande confusão. Eu mesmo, quando me referi a playboy, não queria dizer playboy. Referia-me à juventude transviada, no que vai uma grande diferença. Imbecis confundiram os nomes e botaram tudo numa panela só. E o beatnik? E o hipster? Aparições heróicas na selva que é este novo mundo da técnica. E a natureza do homem sofre transformações fundamentais? Duvido. Ele pode — isto sim — emergir da era dos caos para a do kaos. Transportar toda sua angústia, toda sua mágoa, sua dor, seus instintos trágicos, para uma nova fase. De maior tragédia talvez, e de muito muito maior sensibilidade.

3
O MUNDO caminha para a planificação social. Os homens do povo, o proletariado e o campesinato deixam de ser ou são para se transformar, também, em uma nova "espécie" de classe média. E os antigos oligarcas e aristocratas descem de degrau e também se transformam numa nova espécie de classe média.

4
E OS CIENTISTAS? E os artistas? Ah! estes, num futuro remoto, comandarão tudo. Serão (o que já são) os mandarins, com toda a plenitude e força que a técnica colocará em suas mãos. No fim, só os artistas mandarão. É que a Humanidade andará sedenta de fantasias, sonhos, miragens, mitos (que não são mentiras nem alucinações, mas a representação poética da vida do homem), de um novo sentido religioso. E aí os artistas serão os novos sacerdotes. Apertando os botões das grandes máquinas, o mundo inteiro viverá na grande tragédia que todos escreverão. Porque todos serão artistas.

quarta-feira, 18 de março de 1964

1
A RÚSSIA é um enorme império com pés de barro, disse um dia alguém. E agora vamos analisar, com o meu método racional-poético do Kaos, estas coisas: muita gente fica chocada quando chamo de herói o revoltado jovem que usa blue-jeans. Repito: é um herói um rebelde pronto para o grande salto: da rebeldia para a revolução.

2
POR QUE muitos gênios da Humanidade são conservadores? Quem sabe até fascistas? É porque eles recolhem todo um legado de ensinamentos antigos, e como árvore grande o gênio vive no mistério. O gênio sabe que o mistério, a poesia, o acaso, persistem apesar de toda e qualquer lógica. E como durante algum tempo os sectários dominaram os movimentos progressistas, o mistério era reacionário. O misticismo da contra-revolução. Não sabem os imbecis que Julião das ligas camponesas adora ouvir Wagner e é místico? Que Einstein acreditava em Deus? Que o Kaos é o novo mistério, a nova religião atéia do homem materialista? Ó sectários de todos os credos e partidos: uni-vos em vossa infinita ignorância de frustrados e mesquinhos!

3
NO DIA em que o dogma morrer nascerá um novo mundo. Os símbolos modificam-se, transformam-se historicamente. Todos os símbolos. Durante algum tempo uma certa força humana era chamada de espírito. Esta força que o corpo humano irradia, através de várias manifestações: poesia, imanência, simpatia e antipatia, ódio, amor, intuição, premonição, contato, etc. Todas estas coisas que deixam de ser matéria e é sobre estas forças que recai a análise do Kaos.

4
O DESAJUSTADO é um herói porque se rebela contra um status quo. O drama todo, porém, é que ele não tem forças para dominar o status quo que o oprime. Então é uma revolta dolorosa, uma luta sem meta nem objetivo. Daí ele pode nascer para a revolução, que é a luta com consciência. E mais tarde, se não se transformar em sectariozinho, pode alcançar a terceira grandiosa etapa de ser marxista do Kaos. Isto é: revolucionário com uma supra-consciência poética e sensitiva da vida e da revolução.

5
REALMENTE genial Trótski em sua revolução permanente e em suas teorias sobre arte e estética. Viva, porém, o caminho pacífico! Viva, que há condições para uma esquerda com flores no Brasil.

sexta-feira, 20 de março de 1964

1
A FACULDADE de Direito estava de luto. Faixas negras na tarde cinza de São Paulo. Um jovem faz uma leitura. Fala nos desmandos da polícia. Correm boatos da morte de um repórter da "Manchete". E a gente fica imaginando o colega morto. Uma cólera nasce na gente. Um ódio. A tarde é cinza e o estudante fala com muita emoção, exagero e impulso.

2
O AUDITÓRIO que o ouve lá na frente da Faculdade é estranho. Investigadores, curiosos, lúmpen que não trabalham de tarde, comerciantes, espectadores, pequena-burguesia. Alguns trabalhadores. Ouço uma frase: "Eles querem é incendiar São Paulo".

3
UM LOUCO? Demente? O primarismo da propaganda de direita obceca. Entro na Faculdade e vejo um furo de bala de metralhadora num vidro esquecido. Esquecido porque depois da rajadas a polícia, para não deixar as marcas das balas, espatifou os vidros furados. Esqueceu de espatifar um pedaço de vidro. Lá, ficou a marca da bala. Uma rajada foi alta. Foi para não acertar ninguém. A outra foi baixa: na altura da cintura. Foi para matar.
4
À NOITE chegou o ministro da Justiça. O brucutu com suas luzes vermelhas, na voz do delegado do DOPS, mandou esvaziar o Largo. Depois a polícia baixou a borracha. Eu estava lá e corri para dentro da Faculdade. Estava fantasiado de repórter, com uma máquina sem filme da mão. Parecia um turista na verdade. Estava falando com o Marco Aurélio que, de barba e tudo, falava de poesia. Depois falei com vários estudantes. E estudante é tão otimista. Tão estudante.

5
O MINISTRO entrou fazendo o V da vitória de Churchill. Quando o nome João Goulart foi pronunciado, era como se fosse pronunciado o nome de Dionísio nos mistérios de Eleusis. Eu e todo mundo começamos a gritar: Jango, Jango, Jango. O líder que depois de sexta-feira, 13, alcançou dimensão histórica. Existem dois líderes: Jango e Lacerda. Sendo Brizola o monstro sagrado do povo brasileiro.

6
CONFRATERNIZEI com os estudantes. Meu pessimismo com o otimismo sadio deles. Depois foi aquela apoteose. Troquei algumas palavras com o deputado Cid Franco e seu filho Valter. Cid Franco com sua face de idealista profundo e sincero. A estudante Joana, com a linda estrela de Israel no peito, e a desconfiança para comigo. Alguns amigos. A voz de Abelardo Jurema. Aquele lugar e momento histórico. Porque tudo agora é mais histórico do que nunca! São imagens que ficarão para sempre, como antevisões da Coisa Nova, dentro de mim, poeta místico e pecador.

sábado, 21 de março de 1964

1
TUDO é novo no Brasil. Tudo. Até as esquerdas. Quero dizer: em expressão de massa. Exceções individuais sempre existiram. É como em tudo o mais: estamos atrasados muito tempo. Será às vezes ridículo de minha parte sonhar com um movimento de esquerda para o Brasil como o da Itália ou o da França? Acho que o Brasil tem condições para tanto. Um país cujo processo histórico se verifique pacificamente. Haverá lugar já para um alto nível cultural e existencial na revolução brasileira? Meus esforços de encontrar uma ideologia própria dentro do marxismo (na parte da condição humana e da arte) tem sido atacada pelo maior coro de histéricos sectários visto até hoje.

2
É COMO se eu fosse ovelha negra. Quisling e criminoso. Como são ignorantes estes Catões da província! Não sabem que prejudicam mais a revolução do que a auxiliam? Eu quero impedir que uma nova Idade Média stalinista ou fascista caia sobre o mundo. Sobre o Brasil. Lutarei dentro da esquerda pelos seus altos objetivos.
3
ÀS CARTAS de apoio que recebi, meu sincero e total agradecimento. Cartas de operários, estudantes e gente simplesmente. Cartas cheias de calor humano. Muito obrigado, pois elas me dão forças para lutar. Depois de ouvir os histéricos, é bom ouvir uma voz humana, que fale com o coração e não com a bílis ou com a frustração. E para você, leitora que está tão triste porque já não é mais passarinho, eis o que digo: a vida está em você. As fontes, os rios, o céu, os infernos e os opostos, estão todinhos em você. É só chegar ali no fundo sem medo. Sem medo de ninguém e de nenhuma voz a não ser a tua. E o céu e as asas do passarinho que você foi voltarão a você, porque elas jamais te abandonaram, foram esquecidas por você durante algum tempo. Mas o que é teu, será sempre teu. Isto ninguém te arrancará. E você é poeta, e os poetas têm crises necessárias de melancolia. Você bebe a vida da própria vida. Tomando um simples copo de água. Olhando um trem. Ao lutar pela coletividade apesar dos fanáticos que dizem que também lutam por ela mas o que querem na realidade é o sangue, a vingança, a projeção dos seus complexos. Você tem a vida. Você é a vida! E muito obrigado pelo apoio.

quarta-feira, 25 de março de 1964

1
ELE É FORTE, alto, lindo. Tem a pele bronzeada pelo sol do Guarujá. Músculos nascidos dos halteres, da natação, do pólo aquático. Tem um sobrenome pomposo do qual muito se orgulha. Sorri e acha a vida uma maravilha. Seu único pavor: os comunistas. Os comunistas são o único espectro da sua vida. E comunistas são as reformas para ele. Seu olhar puro, verde, ingênuo, se torna negro, violento, cheio de cólera, quando pensa nos "comunas". Jura que os "comunas" não hão de deflorar sua irmã, nem despedaçar os móveis de sua linda casa do Morumbi, e mostrou-me uma pistola alemã Luger que guarda no porta-luvas do seu carro-esporte Karmann-Ghia. Disse ainda que mais de vinte "comunas" morrerão na frente de sua linda mansão, abatidos por sua metralhadora especialmente adquirida para matar "comunas".

2
COMO é impressionante o número de empregadas domésticas que foram obrigadas por suas patroas a participar do desfile! Foram defender os privilégios das patroas.

3
O ESTUDANTE de direito virou-se para a mal-amada e falou: — "Pois é, nós defendemos o povo, as reformas, a senhora é rica, defende os privilé-gios". E a senhora gritou: —"Está enganado! Eu não sou rica não!" De fato, ela não era rica, era burra.

4
PARABÉNS à gloriosa classe dos estudantes, que sempre marcharão com a História e o povo! O Largo de São Francisco é o heróico Largo de São Francisco.

5
A IDADE Média pode cair sobre o mundo. Depende de nós. Está nas mãos do homem fazer as coisas. Senhor guarda-civil, meu amigo, irmão, homem do povo, você vai atirar no povo? Vamos mais uma vez lançar o apelo da luta pacífica, da marcha legal dentro da Constituição pela efetuação de um vasto e definitivo plebiscito popular. Pelo voto dos analfabetos. Pelas reformas realmente de base. Por todo o programa democrático!

6
SÃO PAULO tem um status quo social diferente das outras regiões do País. Uma frente nacional-burguesa aqui não funciona. Porque aqui a luta de classes é mais nítida. Sempre em nome da união total das forças progressistas e nacionais, democráticas e do centro, contra os golpes que a direita desesperada trama a todo vapor, de qualquer maneira. Saravá!

quinta-feira, 26 de março de 1964

1
QUANDO se descobre a contradição e se passa a aplicá-la, começamos a viver numa nova dimensão. Nosso ser dá um salto qualitativo tremendo e tornamo-nos amorais. Acima do bem e do mal nos leva a dialética. Tudo é negativo e positivo: estamos na contradição fundamental do homem: sua luta contra a natureza para efetuar a caminhada do progresso. Isto é agônico, dolorido. Mas as paixões continuam fluindo com a mesma intensidade. Como enfiar um sentido nisto tudo? Um motivo? Um porquê? Uma moral? Uma meta?

2
A CRISE do homem contemporâneo é a crise da vontade de poder. Para mim o homem será sempre romântico, no sentido denso do termo, sentido germânico.

3
ESTOU com André Breton em sua posição para com o marxismo. Revolução para que o homem se liberte em sua totalidade. Os fins jamais justificam os meios. Ievtushenko e qualquer poeta dirão isto. Poeta no duro. A não ser que antes de poeta ele seja um político trágico. Criticam-me alguns enjoados dizendo que repito coisas e que barateio minha mensagem escrita nos meus livros. Os enjoados estão errados. É preciso atingir todo mundo. É preciso que todo mundo saiba que a revolução, para ser verdadeiramente revolução, necessita da maior liberdade artística e existencial. Que o Kaos, ao lado de ser uma visão particular do mundo, é também a bandeira da liberdade artística dentro da esquerda. Irredutível serei nesta posição. Arte e ciência se equivalem. Nociva qualquer intervenção alheia, de dirigismo ou conceituação. É certo que estas coisas são sabidas mas é preciso repeti-las sempre e sempre, com dizia Sartre.

4
JÁ BASTA o fato de esta geração ainda ser vítima dos efeitos he-diondos do stalinismo. Ou a revolução é feita em estado de total pureza ou ela descambará para a sua mais terrível contradição. A revolução traz em si (como tudo) o seu contrário. E as questões são tão complexas que é difícil o julgamento. Eu nego o julgamento, em questões de arte, para a condição humana. Podemos julgar forças econômicas. Jamais o homem, porque todo trabalho é autêntico. Mesmo o traidor, o vigarista, o falso. Sei que não vão me entender e dizer que eu sou traidor, vigarista e falso.

sábado, 28 de março de 1964

1
BOSSA NOVA: durante muito tempo fui contra. Fui contra, simplesmente, porque era muito bonita, muito bonita demais para mim que não vivo em Ipanema, não tenho carro e sou um mitólogo trágico. Dentro de minha terminologia nietzcheana, bossa nova é muito apolínea, muito doce, muito rococó, muito boazinha, muito açúcar, muito keep-smiling, muito música de estudante sem vivência, muito letra de menino comportado, muito cristianismo, muito boa vontade. Enfim, bossa nova é o anti-eu e o que faço.

2
ACRESCENTE-SE o idealismo sectário político das letras participantes, reveladoras de um cristianismo otimista de um futuro florido. É o anti-eu, o anti-Dionísio. Tem mais: bossa nova é clássica, e eu procuro o afastamento. Ela é doce, mas de um romantismo que não machuca.

3
VOCÊS já viram a cara dos compositores e cantores bossa nova? Caras marcadas pelo sofrimento, rugas, expressão de máscara de tragédia grega. Aracy de Almeida, Noel Rosa, Ismael Silva. Por isto que as minhas músicas são todas dentro de uma linha de afastamento, deixam o ouvinte num vácuo e ele então tem que tomar posição, atitude. Inclusive todos os bossa nova são bondosíssimos. De uma ternura sem igual. Por outro lado são de um avanço tremendo. Eis o outro lado da contradição. Mas sempre carregarão dentro de si a marca de Ipanema, seu mar doce, sua vida amena e a ironia fácil do carioca.

4
A BOSSA NOVA, a meu ver, acabou. Transformou-se, melhor dizendo. Evoluiu para o afro e para o nordestino. Bebem agora em fontes folclóricas, uma verdadeira injeção vitalizante.

5
ANTES era a dissonância pela dissonância. Era o abstrato, o fácil sorrir ante o mar lindo de Ipanema. Era o conselho idiota: chega de saudade, conselho nascido de uma mentalidade de escoteiro ou reformista moral. Uma porcaria as letras sociais também, todas elvadas de uma falsidade hipócrita pequeno-burguesa. Um lirismo evangélico de fraternidade humana. O afro, a pesquisa folclórica, veio dar força telúrica, trágica, injeção de amargura e experiência de vida para esta superficialidade cor de rosa tão linda, tão apolínea que eu fico horas e horas ouvindo e achando o máximo, genial, bárbaro!

segunda-feira, 30 de março de 1964

1
GAROAVA. Chegou dentro do bar sofisticado e pagão um grupo de gente cheia de ginga. Era noite. Garoava e fazia frio. Entrou no bar frio uma turma quente. E quando olhei bem para quem entrava eu vi. E mal acreditei no que vi: entravam no bar gênios. Gênios da música brasileira. E foi de joelhos, em sinal de respeito, de adoração fanática, que eu ouvi com lágrimas nos olhos a voz de três criaturas tão puras, tão geniais que tudo o que de música existira antes deles ficou milênios para trás.

2
NELSON Cavaquinho, Zé Ketti, Cartola. Três nomes que eu pronuncio com vontade de chorar, de morrer, de alegria profunda por ter nascido numa terra chamada Brasil, que fez nascer estes três poetas maiores que Homero em sua simplicidade. Eles merecem uma eternidade de colunas, merecem tanta coisa que eu jamais poderei dar. Merecem tudo. Merecem as melhores gravadoras porque são a voz do povo em toda a sua malícia pura e beleza bachiana de melodia religiosa. Lembra tanto o canto-chão das cerimônias de Xangô!

3
SÃO os poetas mais puros e honestos que já conheci. Aquela voz rouca que carrega um tempo tão grande de emoção, sofrimento e alegria! "Diz que fui por aí levando um violão debaixo do braço". Meus senhores: estes três merecem estátua em praça pública. Merecem o que ninguém merece nessa terra. E a bossa nova nada fez de tão grande como agora, reconhecendo e trazendo à luz do dia estas jóias, estas maravilhas que nasceram nas noites do Rio de Janeiro, noites cheias de dor e alegria, de calor que o sol deixou de dia. Gente do morro. Eu rasgaria toda a minha obra por um samba daqueles! É difícil falar sobre a música, porque a música fala mais do que as palavras. É tanto o meu entusiasmo que, pela primeira vez, esta coluna tem continuação para eu poder falar amanhã sobre essa gente que é a gente do meu povo, que são os artistas do Brasil! Os mitólogos, os cantores, os poetas do povo, com sua ginga, sua malícia, sua pureza (com melodia bachiana aprendida sei lá onde!), seu calor que queima tudo na mensagem de amor mais formidável e revolucionária que já vi!

terça-feira, 31 de março de 1964

1
QUANDO os sambistas entraram no bar, os podres, os alienados, fizeram cara de enjôo. Eu ajoelhado, sabia o valor do presente que me era dado: ouvi a música, pela boca dos compositores! Os ratos, os coitados, os que fazem barulho porque nada mais sabem fazer, continuaram a falar enquanto Zé Ketti, Cartola e Nelson Cavaquinho cantavam. Mas a voz a força dos três era maior que a alienação, a falta de educação, cultura, brasilidade, dos cafajestes. A voz dos três lembrava o coro trágico de Dionísio. Era Brasil no verdadeiro samba social. Era a poesia emanando em toda a sua leveza e profundidade. Era o que de mais puro a massa produziu. Era a própria História gingando sob forma de samba!

2
VINÍCIUS de Morais disse: Socialismo, sim! Mas com samba! E eu acrescento: com samba de Zé Ketti, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, Cartola e Noel!

3
FIZERAM barulho os alienados. E naquele bar eu vi o que era Brasil, poesia e História e o que alienação e nojentice. Os que falavam bobagens intelectualizadas aos grunhidos e os que cantavam poesia de morro e do povo.

4
PEDI desculpas aos três e fiz ver que São Paulo não tinha culpa. São Paulo, o túmulo do samba. Aí os três e o Franco Paulino e eu saímos para a rua e garoava. Então Nelson Cavaquinho falou para mim: — "Será que se pode cantar em rua de São Paulo?" E caía o véu de garoa prateada. Eu disse: — "Pode, a rua é de todo mundo". E então na rua, naquela noite fria, enquanto garoava, mais um samba ecoou. Mais uma vez, a noite que era fria ficou quente. O amor em forma de samba do mais puro rolou das bocas dos três gênios e a garoa que era prateada e fria ficou (eu vi) dourada e quente.

5
OS TRÊS foram embora. De repente. Num carro para o Rio de Janeiro. São Paulo foi visitada por três anjos, três demônios inesquecíveis que fazem a maior música popular, a poesia mais sincera, singela e brasileira que eu já ouvi.
De joelhos.


Jorge Mautner 24/10/2002