Aborrecido, passeio Pelas ruas da cidade. Deixei agora o Rossio E atravesso o Borratém. Deu meia-noite pausada No Carmo. Um amigo meu Passa e tira-me o chapéu. Paro a uma esquina. Esmoreço Numa saudade que surge Dentro de mim não sei como: Uma saudade infinita, Misto de choro e revolta. Alguém me chama no escuro: Volto a cabeça. A uma porta Um vulto mexe. - Sou eu!, Não fuja, sou eu... - Mas quem? Retrocedo, não conheço A mulher que me chamou. Na verdade ninguém ouve, Ninguém distingue o apelo Do amor que anda perdido No mistério de mentir: Deixo-a ficar onde estava; Dou-lhe um cigarro e um sorriso Dizendo que vou dormir. Atira-me boa-noite Num frio olhar de ofendida. Meto à rua do Amparo A perguntar se esta vida Não terá finalidade Menos sórdida e banal? Atafonas. Uma Igreja. Mais acima o Hospital. Um marinheiro propõe A esta que atravessou A rua do Benformoso Irem tomar qualquer coisa Na Leitaria da Guia. Ela pára. É uma catraia Que talvez não tenha ainda Dezasseis anos. Bonita. Devagar vou-me chegando Xaile, uma blusa, uma saia... E oiço a fala dos dois. Ele parece uma onda, Impetuoso, alagante. Ela é um breve bandó Num corpito provocante. E seguem... Ele, encostado, Muito encostado e aquecido Lá vai como se encontrasse Um objecto perdido Que foi milagre encontrá-lo... Cortaram além!... E param? Oiço o rebate de um estalo E um grito subtil de prece Amedrontada na fuga... Desço ao Marquês do Alegrete. Um candeeiro sinistro Numa casa que se aluga... Vejo um polícia. Arrefece. Um grupo de três sujeitos Discute o vinho de Torres. Varrem as ruas. Um gato Bebe água numa sarjeta; Uma carroça parou Carregada de hortaliça Junto à Praça da Figueira. Corto a rua dos Fanqueiros Já um pouco estropiado... Acendo um cigarro. A noite Lembra um fantasma assustado... Chego ao Terreiro do Paço. O arco da rua Augusta Parece mais imponente Na minha desolação... Vou até ao cais. Em baixo O rio bate sem reacção... A maré vasa. No céu, Vão-se apagando as estrelas. Um guarda-fiscal dormita Na guarita, mas de pé. Um velhote com um cesto E uma lata vem dizer-me Se eu quero beber café. Num banco de pedra. Cismo. E ali me fico a cismar Em coisa nenhuma... O dia Principia a querer ser Mais um passo na incerteza Das nossas aspirações... As águas do rio a escutar Parecem adormecidas... E o dia nasce! Vem triste, Nublado, fosco, cinzento, Enquanto pela cidade A vida acorda e desata O matinal movimento... António Botto Photo by Gatumudo |
"eu vou mostrando como sou e vou sendo como posso..." como diriam os Novos Baianos
sábado, abril 09, 2011
Reportagem
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