sexta-feira, outubro 19, 2012

It's allright, ma...




Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.

Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço), deixaste-me
pouco espaço para tanta existência.

Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.

Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.

Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.

Nas tuas mãos
entrego o meu espírito,
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.

Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.

Manuel António Pina

quinta-feira, outubro 04, 2012

De Costas para a Janela




Uma cerveja, por favor

Eu podia habituar-me a ser uma pessoa
arrumada.  Aqui chega ao fim um dia calmo
todo o dia o telefone esteve calado, e em silêncio quase rebenta
o cesto da roupa debaixo do lavatório.
No écran explode uma casa perante a cara
espantada do locutor.  Oh the fucking news!

O que eu quero é sobretudo amor. Não quero
preocupar-me com a marca das minhas cuecas, das minhas meias
que me oferecem pelo Natal, nos meus anos,
pela Páscoa e no dia em que morrer. Em criança pedia
um comboio e recebia uma camisa
coisa prática! embrulhada em celofane, presa com mil alfinetes.
Este poema não é praticamente nada. Mas pensa bem:
Como há-de desaparecer o que nós não derrubamos, a não ser o sabonete
na água do banho? Estou outra vez a fazer humor, embora não
me sinta  voltado para aí.  Terei mesmo
de lavar a cabeça antes de tu chegares? Lavar a cabeça
é uma recordação terrível...

E depois, amo toda a família, especialmente a minha mulher
que não é da família. Como? Eu não disse nada.
Acabou o noticiário do dia, o dia em noticias, the fucking
news. Hoje houve boas notícias. A  Casa da América
foi ocupada, não digo onde.  Começa o filme
e ainda não lavei a cabeça!
Tu não és a minha mulher. Amo-te. Protege-me
que estou a fumar demais! Fica-se nervoso nesta casa
depois de 1933 e depois de 1945. Estás a ligar alguma coisa ao que eu digo?

De repente encontro-me num café, com grande barulheira
ao balcão. Este poema está cheio de potencialidades
como a nossa vida. Evidentemente que não se passa um dia
sem álcool. Ah, a bebida é que dá gosto à vida.
Mehdi já lá está, bêbado como um cacho.  Também tu já chegaste há
um bocado, e tens razões para não falar comigo.
Vai alta a noite, a música está alta. Peço uma aguardente clara
para a minha cabeça ainda clara. Uma cerveja, por favor. Seja o que for
que tu penses de mim, é importante que eu te diga: também tu
escreveste este poema. Não foi arte nenhuma; foi escrito
de costas para a janela.



Jorgen Theobaldy, 1981

A paixão da matemática



Um Quociente apaixonou se

Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base…
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo ortogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela à dela.
Até que se encontraram
No Infinito.
“Quem és tu?” indagou ele
Com ânsia radical.
“Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa.”
E de falarem descobriram que eram
O que, em aritmética, corresponde
A alma irmãs
Primos entre si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz.
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Retas, curvas, círculos e linhas senoidais.
Escandalizaram os ortodoxos
das fórmulas euclideanas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas
e pitagóricas.
E, enfim, resolveram-se casar
Constituir um lar.
Mais que um lar.
Uma Perpendicular.
Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e
diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram
uma secante e três cones
Muito engraçadinhos.
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum…
Freqüentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo.
Uma Unidade.
Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fração
Mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu
Relatividade.
E tudo que era expúrio passou a ser
Moralidade
Como aliás, em qualquer
Sociedade.

Millor Fernandes
Pic by Kiko